Contos da Chama Azul - Primeira história





            Ecoou o primeiro e único grito de Ophellia no palácio de Cadic no mesmo dia que a monstruosidade de cinco cabeças havia sido derrotada. Muitos passaram a acreditar que haveria paz no restante da noite e que o primeiro festival feérico da cidade traria bons augúrios para os próximos anos, mas agora estava Sapphire com ambas as mãos firmes nos punhos de suas espadas reagindo a situação que ocorria com a princesa.

As lâminas mal haviam resvalado na bainha quando a elfa sentiu um aroma adocicado – rosas da caledônia, ela presumiu – e seus movimentos foram paralisados. Como se saísse das sombras, um misterioso ser mascarado com uma face de madeira ria em seu esconderijo:

− Para curar a dor de cabeça que você vai ter mais tarde por causa dos efeitos desse perfume, sugiro que você mastigue folhas de hortelã ou transe – a voz lunática sussurrou das sombras.

            Sapphire assistiu aos acontecimentos parada e sem demonstrar reações, embora o sangue estivesse fervendo em sua cabeça. A visão, que já estava turva, passou a ser emoldurada por uma névoa quimérica e somente quando seus aliados tombaram no chão em sono profundo, a elfa pôde mover-se.

O ódio acumulado pela situação de fragilidade apenas foi dissipado quando as lâminas foram desembainhadas e a ameaça, enfim, pudera ser dita em alto e bom som:

− O que vocês fizeram a eles, seus malditos bizarros!?

            Epherit a observou e pôde notar os nuances avermelhados que compunham a aura da elfa. Havia rancor, ira e vingança, mas esses sentimentos não se formaram ali por causa daquela situação. Ela falou:

− Você carrega um vislumbre entorpecente ao seu redor, elfa. Sou capaz de sentir o cheiro ígneo que lhe escapa pelos poros, uma chama alimentada pelo seu passado. Presumo que você seja Sapphire, inquisidora entre os elfos e simpatizante à Carmine, a Yeshua do fogo.

− Você sabe mais de mim do que eu de você, mas isso não vai te dar vantagem nenhuma nesse embate – as lâminas de Sapphire foram apontadas perigosamente em direção à Epherit, mas a amante de Fleghias pouco reagiu.

− Você não sabe a quem está se dirigindo, elfa – aproximou-se um dos líderes da Fênix Branca. Ele empunha uma lâmina exótica com fio em apenas um dos lados e interponha-se entre Sapphire e Epherit numa posição de combate familiar para a elfa – melhor respeitar o código das boas-vindas, senão, eu não tenho um porquê de respeitá-lo também.

            A espada exótica foi desembainhada e Sapphire pôde ver o desenho de uma serpente-dragão brilhar como num espelho bem polido que era a lâmina da arma do oponente.

Sapphire conhecia aquela arma, uma espada de Asura a qual seu mais recente mentor chamava de katana. Conhecia também aquela posição em que a lâmina se projetava quarenta e cinco graus com sua extremidade mais letal voltada para o chão, mas que, para alguém que conhecia bastante o estilo de luta significava apenas duas escolhas mais pertinentes durante a primeira rodada de iniciativa do combate: proteger o peito esquerdo e tornar outras partes do próprio corpo mais vulneráveis ou contra-atacar no ponto de mais fácil acesso que o dominador daquela arte permitia: acima do joelho que, durante a movimentação, seria o ponto mais eficaz, já que a perna do indivíduo estaria articulada os mesmos quarenta e cinco graus da arma.

            Golpear acima do joelho não era mortal em primeira instância, mas acarretaria no impedimento do uso da mesma técnica posteriormente, então, o coração de Sapphire estaria protegido... se tivesse sorte.

Resoluta de sua decisão, Sapphire virou o próprio corpo, não mais que quinze graus da posição inicial e articulou a perna esquerda num ângulo de trinta, tornando seu membro inferior um empecilho no caminho da katana que o adversário pretendia orientar. A elfa fez aquilo com tamanha naturalidade que o inimigo se impressionou.

            Os dois partiram numa investida letal, um contra o outro. O oponente se preveniu do ataque secundário à sua perna e Sapphire livrou-se do ataque mortal que atravessaria seu coração durante um rodopio ágil.

− Onde aprendeu Tsubasa wa soru*? – perguntou o oponente curioso

* significa “asa protege corpo”.

− Do que você está falando?

− Não pode ter desenvolvido essa técnica com tamanha perfeição naturalmente. Diga-me quem foi o seu mestre e lhe darei um combate honrado.

− Reconheço parte de sua técnica, por sorte a parte que me garantirá a vitória nesse embate. Aquele que me treinou foi Urameshi de Asura e o nome dessa posição não é esse que você pronunciou. Chama-se Usagi no shiri.

* significa “bunda da lebre”

− Está zombando de mim, elfa?

− Defenda-se disso e você viverá para descobrir se eu estou disposta a te zombar!

            Com a ajuda de um impulso auxiliado unicamente pela perna esquerda, Sapphire alcançou o oponente desferindo um golpe leve contra seu peito e abrindo caminho até a traqueia para estocar em última instância. O adversário defendeu-se com certa facilidade, mas ficou bestificado com a manobra.

- Uma ótima adaptação do tori katte iru*. A curva convexa mais íngreme nas suas costas permite alcançar um centímetro mais longe e torna o golpe mais letal. O impulso com a perna não hábil é uma manobra perigosa, mas surpreende e isso pode ser fatal contra um iniciante.

* significa “bico de pássaro”. É uma manobra simples que tem o intuito de afastar o oponente, mas que, na versão da Sapphire, visa surpreender alguém que já conhece a manobra.

− O verdadeiro nome desta manobra é Onara kanji nakatta*. Você vai conversar ou lutar?
* significa “peidei mas não senti”.

− Seu mentor é um idiota! – afirmou o adversário, sério.

− Ele parecia um, mas isso não interessa!

− No entanto, seu estilo é eficaz e exótico. Será uma pena eliminar uma de suas discípulas.

− Falar muito é sua principal manobra de combate?

− Parem com isso... – intrometeu-se Epherit, apesar de toda tensão, havia austeridade em seu olhar – Sapphire, não é minha intenção ou da Fênix Branca ferir ou prejudicar você ou seus amigos. Ophellia me parecia forte, mas fui precipitada. A ligação que ela tinha com o Éden era longínqua. Seus amigos são mais do que capazes de trazê-la de volta, mas, mesmo que não sejam, conheço alguém que faria isso facilmente.

− Porque eu fui impedida de ajuda-los? Porque estou aqui? Ponha-me neste tal Éden também.

− Sinto muito, querida, os elfos são incapazes de acessar o Éden.

− Não existe incapacidades quando se é elfo. Dê-me uma razão antes que eu coloque a inquisição contra a Fênix Branca inteira.

− Elfos não sonham e o Éden é um plano quimérico.

− Que tipo de magia se limitaria a não ser praticada pelos elfos?

− Os elfos dão outro nome e forma ao Éden. Você já deve ter ouvido falar de eidolons.

            Sapphire consentiu, pois, apesar de pouco conhecer sobre os espíritos arcanos que governa o caminho dos elfos, reconhecia a existência dos mesmos. Havia muita placidez nas expressões de Epherit e a elfa não conseguia despejar seu rancor sobre ela. Se viu mudando de assunto:

− Você conhece meu nome e parece saber mais do que isso. O que isso significa?

− Sinto muito se fui invasiva. Eu conheço pouco sobre você, Sapphire. Conheço apenas o que me foi falado na última hora.

− Quem estava falando de mim?

− Um simpático senhor anão que dizia te conhecer. Seu nome era Gongo e ele me disse que você pediu informações a ele sobre o paradeiro da sua irmã.

− Isto é verdade! Mas porque diabos ele comentaria isso com alguém como você?

− Porque ele sabia que eu poderia lhe ajudar de alguma forma.

            Pela primeira vez desde o início daquele embate, Sapphire não empunha firme suas armas. Seu rosto parou de expressar exigências e parecia demonstrar lamentação:

− Quero saber da minha irmã, Cornalina.

− Não tenho boas notícias, querida Sapphire.

− Conte-me, preciso ajudá-la!

− Não conseguirá. Não, ainda. Se tentar fazer qualquer coisa, perderá muito mais do que a vida.

− Explique isso direito.

− Ajude os seus amigos e prossiga sua jornada. O verdadeiro lugar em que Cornalina está é inalcançável para a Sapphire que você é agora.

− Diga onde ela está!

A exigência soou rígida e isso demonstrava o quanto a preocupação de Sapphire estava acima dos encantos de Epherit. Houve um minuto de silêncio no palácio todo, então, Epherit mostrou-se complacente:

 Eu lhe direi Sapphire, mas darei ordens para que a própria Fênix Branca a cace e destrua caso você se aproximar daquele lugar.

 Diga-me... – em primeiro sinal de respeito, a elfa embainhou suas lâminas e manteve-se neutra e frágil diante os olhos de todos da Fênix Branca.

 Sua irmã está em Xea’thoul, o Pântano do Ébano.

            Os olhos de Sapphire se arregalaram, o peito e o estômago foram socados pela informação e o sal das lágrimas começava a arder em suas órbitas.

O que ela poderia fazer em relação a isto?

[FIM]        

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