Crônicas do Éden - Primeira Parte da Jornada





Este conto é a continuação detalhada após os seguintes acontecimentos:

Ophellia, princesa de Azran e regente da cidade de Cadic, vem lutado constantemente contra as forças vis e as ameaças localizadas ao sul do reino da planície eterna. A Mortalha, os demonorcs e o atual ressurgimento da Maçã Envenenada - uma guilda de assassinos que tornou a agir em Cadic - além das bizarras criações dos aklos - as fadas de aspecto macabro e necromântico nomeadas simplesmente de fadas negras.

Tais desafios só puderam ser enfrentados com a ajuda da Távola de Cadic - um grupo de heróis que carrega a confiança da princesa guerreira e aos poucos desperta a fama nas cidades do interior de Azran - porém, mesmo preparados para os mais diversos desafios, nem a távola, nem a milícia, puderam prevenir a chegada dos demonorcs e dos assassinos da guilda da Maçã Envenenada na cidade de Cadic, no mesmo dia em que o primeiro festival feérico havia de ser inaugurado.

Com esforço e uma dedicação que superaram os limites da sorte, os heróis lutaram contra uma aberração jamais vista, criada pela magia da praga orc: uma espécie de hidra com cabeças feitas de carne e horror. Felizmente, os protetores de Cadic receberam a ajuda do famosíssimo grupo de mercenários denominado “A Fênix Branca” no último e mais crucial momento.

Com todos sãos e salvos, o festival feérico pôde, então, ser inaugurado e a visita célebre da Fênix Branca tornaria aquela noite inesquecível. O palácio de Cadic estava cheio como nunca. Dentro dele, nobres e representantes das cidades de Azran brindavam o festival e a recente vitória contra as criaturas macabras. Todos fizeram uma pausa para vislumbrar Epherit, a amada de Fleghias e uma personagem ímpar com poderes premonitórios e uma sabedoria afiada, adentrar o recinto emanando um brilho encantador e abençoado.

Naquela noite, entretanto, Epherit, numa tentativa de ajudar Ophellia a despertar poderes ocultos advindos do amuleto sagrado - dado à princesa pela própria mãe, a sagrada sumo-sacerdotisa Lady Magdalen - provocou um alvoroço no palácio. A regente de Cadic agora entrara num torpor de corpo e espírito e apenas sairia daquele estado caso sua força de vontade a encaminhasse para longe do perigo.

Incitados por Jackaby Maelstrom, o excêntrico estudante de um tipo de medicina macabra e mortal, os heróis da távola beberam uma solução azeda e mal-cheirosa responsável por enviá-los aos sonhos de Ophellia, para um lugar chamado Éden, onde os heróis poderiam, então, tornarem-se os guias da princesa para o mundo real. Daí dá-se o início da aventura.

Boa leitura!



Eles se sentiram como se estivessem realmente em um sonho. Uma claridade esbranquiçada ardeu em seus olhos e depois a nuvem turva que cobria suas visões foi se esvaindo para dar cena a uma construção monolítica formada por rochas firmes escavadas dentro de uma montanha, mas aberta aos ares frios dos arredores, pois não havia teto, só a contemplação de um céu gélido e rodopiante - era a mais pura neve sendo soprada contra barreiras e se estilhaçando como frágeis cacos de vidro.

A visão acabou se tornando magnífica e o silencioso assobio do vento batendo na pedra foi interrompido por uma gargalhada histérica e fora de hora:

- Olhem pra isso! Sapphire e todos os elfos se fuderam! Eles não podem visitar esse lugar, tipo, nunca? Jamais? Um para os goblins, zero para os elfos! Hahaha!

Quem falava era um goblin narigudo portador de um cachecol vermelho que drapejava dançante soprado pelo vento. Seu nome ninguém conhecia, pois a alcunha seria o único título a qual ele mesmo se referia: O Capitão. Um goblin vindo dos mares violentos que abrigam os mais perversos piratas.

- É realmente uma visão magnífica! - concordava Adhraim o belo e fora do estereótipo anão clérigo de Valerie, a deusa da beleza. Seus cabelos e barba bem trançada agiam como adornos brilhantes em seu rosto complacente.

Havia mais alguém com eles. Seu nome era Karsize, um legítimo meio-orc das terras tão quentes quanto assombradas de Katarsh’motta, o império dos orcs. Ele não expressou, naquele momento, nenhuma reação, mas seus pensamentos eram bem fundamentados e nisso ele se diferencia bastante de metade da sua linhagem. No quesito domínio e força bruta, porém, ele havia abraçado seu lado mais bestial. Seu pensamento, naquele instante era:

“Este seria um império perfeito para o meu povo!”

- Vocês congelaram de frio ou estão apenas pasmos? - apresentou-se um quarto personagem, como que vindo do vento e da neve. Era uma fêmea entre os halflings, povo diminuto, porém, muito ágil.

- Ei! Você não é a coisinha que tava com o diabo lá da Fênix Branca? - o goblin resmungou duvidoso.

- Parece que o álcool não afeta os sentidos aqui nesse tal de Éden. Isso é bom pra você verdinho, porque uma queda aqui é mais fulminante do que nas varandas do palácio de Cadic.

- Você é aquela sujeitinha mesmo! Acabo de descobrir seu primeiro defeito: petulância. É claro que nisso, nós somos bastante parecidos…

- Eu sou Adhraim, filho de Tharathor, sou a muralha do templo de Valerie. Quem é você pequena garota?

- Alpha, este é meu nome. Lembre-se dele. Você vai ouvir bastante! Eu sou uma representante da Fênix Branca. Eles tinham que mandar um de nós para salvar a tal princesa e esse sou eu.

- Chega de conversa. Não comprei um mangual barulhento como esse para ficar em repouso! Temos que procurar a coisa, guiar Ophellia e sair daqui. Quê!? Cadê meu mangual!?

O meio-orc foi o último a notar que todos ali estavam desarmados. O resto do grupo tentava tomar alguma decisão enquanto Karsize lamentava praguejando contra os deuses por terem arrancado uma parte de si! (a arma, claro).

- O que devemos procurar? - indaga Adhraim enquanto toca uma rocha da estrutura e tenta sentir seu coração, uma capacidade que somente os anões possuem - Estamos em um monastério. Ele é visivelmente bem construído, feito para abrigar centenas, mas não vemos guardas ou presença qualquer…

- Talvez a gente esteja procurando do ângulo errado - o Capitão demonstra nessa hora sua capacidade de escalar grandes alturas, alcançando uma rocha cuja visão de seu cume poderia revelar a existência de algo que pareça vivo - Não vejo porra nenhuma! Mas tem um lugar legal no meio de tudo isso… parece um jardim. Tem água limpinha lá e também rosas e espelhos, como o Adhraim gosta.

- Iremos para lá, então. Se puder nos guiar, Capitão…

- É o que um Capitão faz, meu caro: guia. Seja em alto mar ou em direção à morte. Eu serei seu guia.

***
O grupo perambulou pelo monastério incrustado no interior da montanha. O lugar estava protegido das fortes ventanias, mas era impossível não sentir o frio intenso que emanava mesmo da rocha. Eles subiram escadas, encararam estátuas gigantes de uma representação feminina em poses que lembravam o estilo de luta de Ophellia.

- Será que Ophellia aprendeu a lutar imitando a posição dessas estátuas? Pensa só! É ridículo! Hahaha!

- O que isso significa Adhraim? - perguntou Karsize.

- Eu não sei.

- Você é um clérigo e não reconhece essas imagens? - intrometeu-se Alpha - Já as vi algumas vezes em tamanho bem menor, esculpidas em pedras de jade. Essas são representações de Azka, a deusa mártir.

- Parece com alguém que eu já vi! - exclama o Capitão.

O frio intenso ficava cada vez mais ameno conforme o grupo chegava no centro de tudo. O verde começou a ser notado no chão, como um tapete de musgo. O barulho de água cristalina predominava sobre os corações dos heróis e os acalmava.

- Vontade de mijar… - afirmou o goblin.

- Nem se atreva! - intrometeu-se Adhraim e recebeu uma gargalhada horrenda como resposta do amigo.

Foi no centro do monastério, num jardim utópico, que os invasores do Éden notaram as formas espectrais brancas como neve, transparentes como o ar, se formarem ao redor de toda edificação. Uma centena de criaturas.

- Fantasmas! E estamos desarmados! Eu estou sem o meu mangual que acerta fantasmas! Droga!

- Acalmem-se, eles podem não ser inimigos - Adhraim tentou acalmar a todos.

- Meu cu! Morto-vivo é tudo carniceiro! Chama tua deusa Adhraim.

Foi o que Adhraim fez. Sem êxito.

- Não queremos mal algum à vocês. Sou Adhraim, filho de Tharathor, a muralha do templo de Valerie. Viemos em busca de Ophellia, a princesa de Azran. Vocês nos farão mal?

- Não faremos qualquer mal a quem é amado pela discípula de Yin - cem vozes foram emitidas ao mesmo tempo. Elas sussurravam acompanhando o vento que rodopiava no lugar.

Pedras flutuaram junto à pequenos globos de água e o espírito de um humano pairou sobre o espelho líquido que vestia o chão.

- Eu e todos aqui somos Rengaf. Protetores do Éden de Ophellia à comando e pedido de uma Yamanaki. Esperávamos pela ajuda de alguém de fora.

- Ajuda em quê? - perguntou Karsize.

- Para resgatar Ophellia do inferno gelado que cerca o monastério dos ventos uivantes.

- Como ela foi parar lá? - Alpha pergunta dessa vez.

- Ela não aceitou o descanso de seu corpo e moveu seu espírito para além da proteção de nossas muralhas. Ophellia deseja enfrentar a fera que assola o céu de seu Éden e, com isso, busca a libertação de seu espírito.

- Então ela partiu? - pergunta o Capitão, desconfiado.

- Não sentimos mais a presença dela. Deduzimos que ela partiu e que talvez seja tarde demais.

- Vamos combater a tal fera, mas primeiro nos forneça armas. Armas grandes e de duas mãos. Nada de treinamento com socos e tapas.

- Nós, Rengaf, podemos fazer isso. Reconhecemos que vossos corpos não estão habituados ao Éden, mas podemos fazer com que vocês achem que sim. Suas almas estão intimamente ligadas aos seus receptáculos

- Meus dedos já sentem falta da corda de meu arco.

- Mas fazer isso requer um sacrifício muito maior do que esperávamos ter de fazer. Cada um de nós, Rengaf, cobrirá suas percepções com a realidade do Éden, mas a barreira que protege esse monastério sofrerá com a ausência de seus protetores. O fracasso de vocês acarretará no nosso fracasso.

- Então, tudo que precisamos fazer é não falhar. Com as bênçãos de Valerie, eu vou garantir nossa vitória, mas minha bela deusa dos espelhos não pode ouvir o meu clamor dentro deste monastério. Há algo que possa ser feito quanto a isso?

- No Éden temos uma ligação muito maior com o que vocês chamam de deuses. Sentirá o milagre inundar sua vontade nesse jardim, Adhraim, a muralha. Valerie não te abandonará aqui.

- Então, prometemos o triunfo.

As almas do monastério dos ventos sussurrantes ergueram suas mãos espectrais e clamaram pela realidade num tom de louvor uníssono. Os heróis sentiram o calor da luz que emanava de seus corpos enquanto essa ganhava forma e peso transformando-se em suas armas e armaduras.

- Hora de encarar as terras geladas - sorriu Karsize quando ouviu a bola de espinhos de seu mangual tocar o chão.

***
Longe do monastério, os heróis encararam a imensidão branca e desértica. Não demorou muito para perceberem que o caminho tratava-se de um único espelho de gelo escorregadio coberto de neve.

Karsize parecia despreocupado com a possibilidade de rachar o gelo e morrer em sequência, apesar de reconhecer muito bem a dor cortante que é nadar num mar de água gelada.

- Um infeliz que cai num poço de morte fria como esse, não consegue reagir no primeiro segundo. O choque é imediato. Não há movimentos! Depois, quando se consegue pensar em alguma coisa, sentimos a dor lancinante em cada poro. Como se uma centena de adagas estivessem perfurando a carne, todas ao mesmo tempo.

Adhraim podia sentir a crosta de gelo ceder à cada passo dele. Um anão, por si só, é um indivíduo pesado e o clérigo de Valerie portava armadura e escudos robustos.

- Precisamos da proteção de minha deusa. Fiquem parados, consigo sentir a presença dela mexendo com minha sabedoria. Sei que milagres vãos nos ajudar aqui.

Karsize, Alpha e o Capitão notaram que os olhos de Adhraim eram, agora, um par de diamantes lapidados e tão cintilantes que mais pareciam o reflexo de uma luz sagrada projetada em um espelho.

- Estamos protegidos do frio e do afogamento, como assim minha deusa desejou. Precisamos ser efetivos para honrar a oferta que Valerie nos deu.

- … e eu sei onde poderemos testar essa “oferta” - interrompeu o Capitão, apontando para uma direção além da fina nevasca à frente do grupo.

Haviam placas de gelo quebradas flutuando na água e uma imensa embarcação localizada a mais de cem metros além do caminho. A caravela havia se chocado com o gelo e navegado por alguns muitos metros até que enfim encerrou seu deslocamento forçada pelo ambiente.

- … nos arredores daquela caravela, vejam! Ogros! - complementou o Capitão.

- Não são ogros, são yeths - corrigiu Alpha.

- Qual a diferença afinal?

- Yeths são adaptados aos climas frios. Inimigos muito mais perigosos em um lugar como esse. A nevasca não vai ser um empecilho para eles como é para nós.

- Ainda assim parecem fáceis de abater! - resmungou Karsize segundo firme o cabo de seu mangual.

- Estamos protegidos por Valerie e podemos cuidar disso… - acrescentou Adhraim.

- Não, não, não! Seus idiotas! O Capitão tem que pensar em tudo! Ora, vejam onde esses tais yeths estão… se quebrarmos o gelo eles morrerão do jeito que Karsize falou, independente do quanto eles são “adaptados”... Hehehe…

- Eu prefiro essa ideia… - concordou Alpha.

- E como você pretende quebrar todo esse gelo?

- Com essas belezinhas que catei numa aventura antiga. São armadilhas de fogo! Entendem? Fogo contra gelo!

- Nem eu consigo arremessar isso até lá! Muito longe! - comenta Karsize enquanto analisa insatisfatoriamente o cubo de ferro e anagramas nas mãos do goblin.

- Mas, eu sou o Capitão! Chegarei intacto lá e plantarei essas coisinhas. Quando tudo explodir, já estarei em algum lugar seguro.

- Parece uma boa ideia - concordou Adhraim.

- Rengaf falou sobre uma fera e ela não deve ser esses yeths. Precisamos economizar energia para quando, enfim, tivermos de enfrentá-la. Além disso, cada flecha minha é uma preciosidade, elas precisam ser gastas em coisas que realmente valham a pena.

- Receba o auxílio de Valerie, pequeno, e tenha boa sorte.

- Não vou precisar disso, por enquanto.

Com a destreza de um felino, o Capitão se deslocou até o perigo confiando na camuflagem que as fortes rajadas de vento e neve lhe dava. A visibilidade do pequeno era pouca, mas isso também acabou sendo a maior vantagem para a sua aproximação: os yeths ainda não haviam notado sua presença e ele sabia que isso iria continuar assim.

Chegou, enfim, a menos de três metros da embarcação encalhada, escolheu um lugar para enterrar sua primeira armadilha de fogo e torceu para que o plano desse certo. Limpou o acúmulo de neve até chegar na superfície de gelo espelhado, depositou a geringonça lá e se deparou com uma imagem cavernosa nas profundezas da água abaixo de tudo.

A curiosidade do Capitão o fez arriscar mais. Ciscou a neve e limpou mais dois palmos de visibilidade. A placa de gelo deformava a visão da coisa que ele suspeitava haver abaixo de si. Repentinamente, como se saído das profundezas do oceano, um brilho azulado tornou-se esférico e o goblin arregalou os olhos pasmado.

Era a órbita medonha de uma criatura escamosa. O goblin lutou para não gritar e estragar sua furtividade, mas a gigantesca criatura o seguiu com íris de sua órbita e um segundo depois, o Capitão sentiu o chão tremer!

Muitas placas de gelo foram destruídas durante o tremor provocado por uma imensa garra dracônica. Os espelhos de gelo se quebraram dando passagem para um par de asas escamosas e uma cascata de água fria que se derramava sobre o corpo do dragão de escamas brancas.

O pavor tomou conta das atitudes do Capitão e ele deixou cair sua segunda armadilha de fogo na água gelada. Aquele plano não iria funcionar, por isso o goblin decidiu ir para a próxima etapa: correr!

As placas de gelo se quebravam permitindo a passagem de ondas violentas e espirros de água que acabaram por dificultar a fuga do goblin. Em movimentos rápidos e evasivos, o Capitão livrou-se do aperto de uma segunda garra dracônica se espremendo por entre os dedos escamosos da criatura e deslizando para um falho esconderijo alguns metros adiante.

Naquele instante, os yeths encerravam seu ofício e liderados por um membro da raça portador de uma bizarra armadura de metal pesado e  uma clava que ostentava em sua extremidade de ataquem, a caveira agonizante do que um dia havia sido sua vítima (provavelmente outro yeth). No idioma gigante o líder dos yeths, localizado em cima da embarcação, segurando nas bordas da caravela, rosna e grita comandos irreconhecíveis para seus súditos.

Longe, Karsize grita asneiras enquanto se harmoniza com seu constante estado de fúria.
- Aqui, fera! Adiante de alguém com a sua altura! - ameaçava ele.

Adhraim, ao seu lado, conjurava uma sigilosa magia na palma da mão. O símbolo inscrito com cera preta parecia uma gema, como um diamante ou rubi, rachada.

- Fiz a minha parte, anão! Agora, espero que você saiba arriscar de verdade.

O dragão branco escavou as placas de gelo enquanto impunha força em suas juntas para alçar voo. As asas da criatura mostraram-se adaptadas à forte ventania e o céu não era um obstáculo para a forte presença da espécie dracônica. O frio logo se aglomerou nas escamas e os heróis puderam ver a bocarra absorver a ventania e se acumular perigosamente na garganta do monstro.

O Capitão livrou-se de encarar o terrível dragão devido a coragem de seus amigos, agora ele deveria  compensar a ajuda com esperteza. Aproveitou a névoa fria espalhada pelo alçar de voo e encontrou um esconderijo na imensidão branca. Destruir a embarcação e acabar com os yeths seria sua próxima missão.

O líder dos yeths, imponente em sua armadura roubada de algum gigante nobre, exigia de seus seguidores uma vigilância redobrada seguida da cabeça do pequeno goblin. O Capitão, porém, tinha bastante confiança em suas capacidades e desviou o olhar de seus farejadores até finalmente alcançar uma corrente larga e enferrujada que um dia, talvez, havia servido para sustentar o peso de uma âncora, Olhou para trás e percebeu seus aliados esperando a primeira investida do dragão.

Adhraim se pôs a frente da besta, escudo riste ao corpo, como se esperasse barrar a avalanche que seria o encontrão do dragão branco. Karsize se posicionava com o mangual firme nas mãos esperando pelas sobras do resultado do embate com o anão e Alpha devia estar se aproveitando de uma cobertura, pois o Capitãonão pôde notá-la ao longe.

Capitão chegava ao último elo da corrente que estava escalando quando o dragão branco regurgitou o acúmulo de frio e ventania de sua garganta. Antes que a baforada cobrisse tudo de gelo, Adhraim lançou-se numa investida perigosa diretamente contra a criatura. A baforada cristalizou sua barba e os primeiros cortes no rosto devido à exposição com o frio intenso começavam a aparecer quando ele se jogou no chão, rolando enquanto mantinha a mão da maldição rogada erguida.

Um simples toque de Adhraim e o dragão branco sentiu sua sorte se esvair, desafiado pela deusa do anão. A criatura desabou todo o peso no chão, num forte baque responsável por quebrar o caminho de gelo que se interpunha entre ele e Karsize. Seus olhos se arregalaram reagindo à surpresa de ter sido fragilizado tão facilmente e o meio-orc, saindo detrás da nuvem de frio e com escoriações semelhantes à que Adhraim sofrera ao enfrentar o sopro do dragão, atingiu uma das órbitas com o mangual certeiro.

As garras do dragão afastaram a teimosa ofensiva de Karsize ao mesmo tempo que sentia o sangue quente molhar suas escamas.

O Capitão sorriu contente quando ouviu o lamento do dragão ao longe, mas a diversão acabou assim que, ao pisar no convés da caravela, foi surpreendido com meia dúzia de yeths e o sorriso sádico do líder destes empunhando uma clava aterrorizante.

O primeiro machado que veio em sua direção tingiu a madeira da embarcação com a coloração vermelho vivo, encharcando a face do goblin. Surpreendentemente, o Capitão não sentiu dor. Limpou o sangue de seu rosto e notou o corpo de um dos yeths estendido no chão, alvo de um único ataque com espada larga.

O desconhecido trajava um manto com capuz de veludo e ostentava a cor verde mais do que qualquer outra. Suas mãos agarravam firme o cabo da espada larga. Estranho ou não, naquele momento, o sujeito era um aliado, o Capitão percebeu isso quando o viu limpar a lâmina da espada do resto de cérebro do yeth.

O líder dos yeths bafejou um sopro de ar gelado que lhe saiu pelas narinas, sua irritação o fez voltar-se contra o estranho e num grito de vingança tentou arrebatar o sujeito, mas foi interrompido por algo que lhe atou o pescoço e varreu suas pernas, fazendo-o cair.

Com mais dois movimentos rápidos, outro intruso socou o rosto do líder dos yeths bem no meio das fuças.

- Rapariga! Sabia que você tava viva! - exclamou o Capitão quando reconheceu Ophellia mais viva do que nunca.

O goblin armou-se com seu estranho porrete de cravos afiados e o enfiou nas virilhas do yeth caído num golpe de oportunismo. O jogo havia virado… por enquanto…

***
Três flechas encontraram um bom caminho até a carne do dragão branco. A mira esplêndida de Alpha conseguiu encontrar uma brecha entre a centena de escamas que formavam a armadura do inimigo. Mesmo livre da ameaça de ser esmagada pelas poderosas garras do monstro, a halfling respirava profundamente para controlar seu medo ao encarar o desafio. Ela era da Fênix Branca, mas nunca tivera a oportunidade de enfrentar qualquer tipo de dragão e agora se surpreendida com a vitalidade da criatura: três flechas bem fincadas no corpo, um olho perfurado e uma maldição rogada não eram o suficiente para considerar a luta dominada por seus aliados.

- O que vocês tão fazendo? Essa coisa vai devorar vocês! Pelos deuses, isso é um dragão, seus malucos!

Não adiantou reclamar, Karsize continuou a atacar agressivamente. Algo que Alpha não conhecia, ainda, sobre o meio-orc é que, uma vez instigado pela fúria, Karsize arriscaria sua vida até o último fio. A corrente de seu mangual girava provocando um estrondo sônico, como um pequeno trovão disparado muito próximo da luta. O relâmpago, é claro, era a bola de espinhos envolta de uma energia quase invisível, mas muito destrutível. Um golpe certeiro e meia dúzia de escamas pareceram vidro se quebrando.

Adhraim cercava o dragão branco e abaixava-se vez ou outra afim de evitar a cauda. O peso de seu corpo atrapalharia manobras mais intensas, por isso, ele limitava-se a ser uma muralha e clamar o castigo de Valerie contra o inimigo. Seu martelo mágico mais servia para atiçar a raiva da criatura e abrir brechas para que Karsize acabasse com aquilo o mais rápido possível.

Uma forte rajada de vento arrebatou as flechas de Alpha e, inteligentemente, o dragão branco aproveitou para erguer-se num salto impulsionado pelo ar entre suas asas. Karsize foii arrebatado pela imponência gigantesca do inimigo e tombou deslizando sobre o gelo frágil. Seu castigo, porém, não terminou nisso.

O dragão o abocanhou junto com o gelo e a água abaixo de tudo. O meio-orc sentiu sua pele rasgar-se quando as presas da criatura perfuravam suas costas e pernas feito espadas. A força do maxilar do dragão era tamanha que Karsize perdeu os movimentos necessários para reagir à dor, seus ossos lutavam para não quebrarem. Sangue insistia em sair por todos os lados e especialmente pela boca. Por fim,quando Adhraim exigiu que o dragão larga-se o amigo, Karsize foi cuspido na água para afundar e morrer…

Sorte dele que as bênçãos de Valerie ainda estavam o protegendo. O meio-orc sentiu o baque da queda como se tivesse caído num chão sólido, ao invés do agitado oceano que balouçava abaixo dele.

Alpha disparou mais três flechas. Nenhuma delas chegou a um destino sangrento. Foi nesse momento que a halfling percebeu que o combate ia acabar em alguns instantes… e não teria um resultado satisfatório.

***
Poucas vezes, nos últimos cinco anos, o Capitão teve tantas chances de mostrar sua habilidade acrobática à bordo de uma caravela. Equilibrando-se nas laterais da embarcação, o goblin esquivou-se de três yeths sedentos por esmagá-lo. Como se recordasse uma antiga dança de pirata, Capitão evadiu em rodopios precisos, posando como um pássaro num poleiro, pronto para bicar sua vítima em algum ponto vital. Foi assim que ele conseguiu um olho de yeth preso a um dos cravos de seu porrete após um ataque.

O estranho de capuz verde usava de sua maestria com a espada larga para defender os ataques pouco estudados dos yeths. Esperou pelo momento certo para decepar a perna direita de um dos gigantes e jogá-lo com o ombro para a água gelada abaixo da embarcação.

O líder dos yeths ergueu-se bronco. A clava estava novamente em suas mãos peludas. Ele se deparou com a monge pronta para enfrentá-lo páreo a páreo e não recusou a treta. A clava gigante socou o ar velozmente, mas Ophellia desviou-se com facilidade realizando uma acrobacia por cima do yeth e o prendendo novamente com os trapos que se desenrolaram de seus braços.

Desse vez, entretanto, a monge se surpreendera com a força redobrada de seu inimigo. O líder dos yeths segurou as amarras e, esboçando seu riso mais sádico, puxou Ophellia para perto de si socando-lhe o estômago. A monge caiu no chão ajoelhada e desnorteada. A visão embaçada tornava impossível prever o próximo movimento do adversário e a clava com rosto de caveira descia sobre a cabeça dela fatalmente.

O guardião de manto esverdeado tentou abrir passagem por entre dois yeths, mas estes conseguiram interceptá-lo. A pesadíssima clava golpeou violenta o piso da caravela causando um tremor muito mais forte do que qualquer um seria capaz de prever. Uma fissura larga começou a desenhar-se no convés, se espalhando e abrindo como a boca de uma imensa criatura que iria devorar todos acima dela. Jatos de água romperam o casco já fragilizado da caravela e alcançaram o convés como gêiseres que golpearam o líder dos yeths forte o suficiente para atordoá-lo.

Ophellia, esquivando-se de todo terreno acidentado, chutou forte o peito do líder dos yeths e o ser desengonçado não suportou o peso da própria armadura, caindo no vórtice de água gelada que havia se formado na fissura recém criada. Antes que o monstro fosse esmagado pelo encontro das águas, a monge recolheu a clava do gigante guardando-a para si e saltando os destroços para alcançar a saída daquele naufrágio.

O Capitão, sem pensar duas vezes, pulou da embarcação e usou a corrente para deslizar agilmente até um espelho de gelo que havia resistido flutuando sobre as águas. O guardião de manto verde chutou o último dos yeths na fissura e sem medo da dor, saltou da embarcação caindo forte sobre a superfície que cercava a caravela. Ophellia esperava ambos lá embaixo:

- A caravela vai engolir todo esse gelo! Precisamos sair daqui agora!

O trio corria mais rápido que as próprias pernas, saltando por entre placas de gelo e sentindo serem tragados pelo vórtice de água gelada que se formava com a inundação da caravela. Ganharam uma distância segura o suficiente, mas, infelizmente, correram para uma situação bem mais complicada.

***
Alpha tomou distância do combate quando notou que a maldição provocada por Adhraim no dragão parava de surtir efeitos. A cada da criatura desabou sobre o anão e o arremessou a alguns metros. As patas traseiras pesaram sobre o mar gelado abaixo das placas e se desmanchou conforme o dragão ganhou distância para um salto longo que foi capaz de arrebatar Karsize e alçar um voo desajeitado.

Neve e ar se acumularam novamente na boca do dragão ocupando sua garganta. Alpha teve a impressão de estar sendo tragada para dentro de um tornado e segurou-se a uma pedra coberta de neve para segurar o próprio corpo.

- Ela fugiu! O dragão fugiu da gente! Eu nos declaro vitoriosos dessa luta, com a ajuda das bênçãos de Valerie! - comemorou Adhraim, erguendo-se do chão.

- Segura firme sua arma, anão. Vamos ter que rebater aquilo quando ela vier novamente! - interrompeu Karsize.

Adhraim, então, percebeu que o dragão inverteu a direção de seu voo e urrou furioso no céu esbranquiçado com o sopro dentro de da boca.

- Temos a proteção de Valerie, Karsize! Nenhum frio poderá ser tão intenso! - emitiu Adhrain, esperançoso.

- Tô confiando nisso. Dessa vez sou eu quem salto sobre o dragão!

Alpha buscou distância para disparar um tiro certeiro, mas percebeu a vista enevoada quando uma nuvem de ar frio apareceu de repente ao redor do campo de batalha.

- Péssima hora para essa névoa aparecer! - reclamou Karsize.

- Não é uma névoa comum - Alpha conseguiu ouvir a reclamação e responder - a névoa obscurecente foi conjurada pelo dragão. Ele vai nos surpreender com seu sopro de gelo! Estamos condenados!

Um silêncio apavorante preencheu o campo de batalha. Nenhum dos heróis conseguia enxergar um ao outro. A névoa tornou-se demasiado densa e o frio castigante só foi possível de suportar graças as magias divinas de Adhraim.

- Posso escutar o barulho das asas da criatura… ela virá sobre nós… - sussurrou o meio-orc, empunhando nervosamente o mangual pesado e o girando afim de afastar o máximo da névoa ao seu redor. Não adiantava.

O dragão branco mergulhou contra os inimigos desavisados, dissipando a névoa obscurecente com um forte bater de suas asas e encerrando o voo num tombo esmagador que explodiu as placas de gelo e criou uma onda violenta e arrebatadora. Adhraim e Karsize cobriram seus rostos tentando se proteger da água. Eles não afundaram, pois pisavam sobre o líquido gelado como quem pisa em alvenaria.

O dragão inteirou deslizou sobre o gelo quebradiço e sua cabeça parou centímetros próximos de Karsize.

- Matei! - exclama o meio-orc golpeando a criatura bem entre olhos.

Alpha observava aquilo incrédula. Qual o motivo daquela imensa criatura ter morrido daquela forma?

- Você matou, nada! - Capitão grita enraivecido de algum lugar.

O goblin saía debaixo do dragão, ensanguentado com o líquido mais viscoso e erguendo um órgão pulsante nas mãos.

- Já viram o coração de um dragão? Não parece melhor do que o de um humano! - citou ele sorrindo da situação. Atrás dele estavam Ophellia e o guardião com capuz verde.

Mais tarde, numa noite em que a conversa não parecia terminar, Capitão contaria a todos que, após ele mesmo naufragar a caravela dos yeths, aproveitou-se da névoa obscurecente para garantir seu esconderijo e arrematar-se contra a garganta do dragão, lugar que “coincidentemente” ele descobriria ser o maior ponto vital da criatura.

Mais tarde, também, protegidos por Rengaf e cento e um espíritos, o grupo descansou no Éden de Ophellia, reconheceu o guardião de capuz verde como Jonah Steins, o braço direito da princesa em Cadic (e que agora tornou-se um protetor de seu Éden). Havia muita coisa para ser explicada no final daquela aventura: Ophellia tinha a certeza de ter sido arrebatada pela clava do líder dos yeth, entretanto, ali estava ela sã e salva.

- Senti o meu corpo ser um com o ar e então, esvaí. Eu já não era algo tangível, também não era uma névoa ou um fantasma. Senti que eu era muito mais do que isso. Senti que aquela criatura não poderia me vencer.

À esta declaração dada à Rengaf, a monge apenas foi alertada de que o Éden havia aberto mais uma porta para ela.

Porém, há muito o que se aprender ainda… e esta foi a primeira parte da jornada no Éden. Quem sabe quando terá outra.

***

Longe do Éden e ainda tentando entender tudo, Sapphire não somente lamentava não ter acesso àquela aventura, como tentava buscar uma informação mais plausível do que “elfos não podem sonhar”. Esse motivo também não havia agradado Melanias… por enquanto, entretanto, desconfiança era a única objeção que aqueles elfos poderia ter.

***

Continuação na próxima parte da Jornada no Éden.

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