Do alto do que antes era o Monastério de Azka, Lancaster olhou sua criação se desfazer diante os olhos. “Não!”, berrou indignado e incapaz de reconhecer a vindoura derrota, “Seus estúpidos teimosos!”, punhos fechados agarrando a longa capa esvoaçante. Trovões acompanharam sua fúria, o céu desabou com mais força.
“É o fim, Lancaster, fomos derrotados”, a voz vinha das escadarias do monastério, “Contente-se, conseguimos muito resultado, muitos dos heróis do presente foram mortos aqui…”, era Allandal, sua cabeça calva e os olhos azul-gélidos apareceram submissos no mar de escuridão, “Temos de reconhecer a derrota e darmos o fora daqui”. Lancaster ainda estava atônito em seu ódio, quando percebeu a presença do aliado agiu de forma desmedida: “Você!”, agarrou-o pela gola do casaco encharcado, “Você fracassou!” e ergueu-o às alturas com a facilidade que uma mãe levanta seu bebê pronto para parti-lo em dois, “Disse-me que se alcançássemos a vadia do anão a távola estaria eliminada!”, apesar de preso às garras furiosas de Lancaster, Allandal manteve-se paciente, “Não foi isso o que aconteceu, creio que acabamos fortalecendo os sentimentos do resto que sobrou da távola”, Lancaster urrou de cólera e arremessou o aliado contra o céu tempestuoso, mas Allandal encerrou seu movimento com uma magia de voo.
“Apenas faltavam três! E um deles perdeu todas as bênçãos do deus! Você é um inútil!”, Allandal retornou ao topo do monastério indisposto a alimentar o ódio do aliado adversário, ao invés disso, discursou, “Assim são os heróis. Resgatam energias da justiça, da benevolência e do amor…”, Lancaster não podia acreditar no que estava escutando, “Me parece que você está torcendo a favor do inimigo!”, “Entendeu errado, irmão”.
Mais adiante, Cadic despertava. O distrito de Forte Decker abriu as portas de sua fortaleza e comandados pelo experiente Lorde Samuel, os guerreiros ergueram a flâmula da cidade e seus escudos verdes com o desenho da macieira. Samuel gritava “Por Cadic! E pelo antigo Forte!”, somaram-se a voz dele inúmeras outras, muitos dos soldados de Cadic haviam se refugiado no distrito e agora, parcialmente tratados dos ferimentos, a maioria investia contra os inimigos num último e esperançoso ataque.
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Escudo/Emblema de Cadic |
Do calabouço do Templo de Splendor, uma dezena de paladinos e clérigos do deus da justiça, motivados pela aparição e anunciação de Halig, brandiram suas armas mais uma vez e guiados pelo único raio de sol que trespassava as nuvens negras, alcançaram os portões da basílica e gritaram em louvor à Splendor, “A justiça encontra o caminho!”, bradaram.
“Eu não aceitarei uma derrota!”, grasnou Lancaster, “Nunca!”. Allandal meneava a cabeça negativamente, “Não há muita coisa que você possa fazer agora, barão. Voltemos para a proteção da Muralha”, Lancaster não o ouvia, ao invés disso procurou a ajuda da escuridão:
“ESCUTE-ME SENHOR DA MORTALHA! SOU O MELHOR DE SEUS SERVOS! EU DESEJO PODER! DÊ-ME MAIS UM POUCO E EU DERROTAREI O INIMIGO! RECONHEÇA-ME, SOU LANCASTER, SEU MAIS FIEL DEVOTO!”
A escuridão não o respondeu, ao invés disso, os presentes ali puderam ouvir o riso infantil de uma terceira presença, como a zombar de alguma asneira pronunciada. Allandal e Lancaster viram a treva no interior do monastério criar silhueta e longos cabelos brancos se derramarem no chão, como teias de aranha. Allandal afastou-se, dominado por um medo irracional, Lancaster, entretanto, riu, pois acreditara que seu pedido havia sido escutado, “Você, garota!”, caminhou até a própria e a percebeu sentada em caixotes que, por mais que indigentes, pareciam um trono emoldurado pela escuridão. Ela mantinha a cabeça baixa e abafava risinhos zombeteiros, “Você é um vínculo com o deus! Alerte-o sobre mim!”, a garotinha apenas riu mais alto, “Ouça-me!”, e ela riu histericamente, seus ombros trêmulos enquanto a risada lhe saía descontrolada.
“Escute-me garota!”, gritou Lancaster, impaciente, segurando firme os ombros da pequena e impondo força. Ela parou de rir repentinamente e ergueu vagarosamente seu rosto sério. Lancaster então pôde ver os profundos olhos amarelos, um par de amêndoas refletindo a imagem do inferno. O barão sentiu o verdadeiro poder da Mortalha e cedeu, afastando-se temente, ajoelhando-se incapaz de fitar os olhos daquela presença, “Você deseja poder, Lancaster?”, a pequena garota fez soar uma voz masculina estrepitosa, como a de um idoso. Os olhos de Lancaster se arregalaram vítimas de um nervosismo repentino, apenas conseguiu assentir com a cabeça, “Você o terá, barão. Você terá a derradeira chance”, a face da garota era vilania estampada, “Obrigado, senhor. Muito obrigado...”, agradeceu trêmulo.
Nas sombras, Allandal se escondia. Ele viu a criança segurar a cabeça de Lancaster e vomitar, boca a boca, o líquido preto gelatinoso que se assemelhava à piche. A escuridão da Mortalha preencheu as entranhas de Lancaster e ele a sentiu querendo explodir seu corpo, arranhando e devorando suas vísceras. O barão regurgitava a coisa, mas ela não desejava sair. Já tinha um hóspede.
Allandal desapareceu através de magia. Lancaster teve suas vontades suprimidas pela entidade que é a Mortalha e o bruxo flutuou no ar, tomando caminho até o centro de Cadic. Ele faria com que todo aquele episódio finalmente acabasse.
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