Cadic não cairá!

Pingos de sangue caíam do rosto de Samira, ela se apoiava na espada bastarda com o símbolo da cruz-espada. Adhraim deitava-se no colo de Aurora, tendo seus cabelos e barba afagados pelo toque gentil da amada, os fechos de sua armadura desabotoados. Ofélia ainda sentia o formigamento dos espinhos em seu corpo, o veneno vagarosamente saindo-lhe pelos poros, ela, então, ergue-se, buscando os vestígios de suas forças, cambaleando trôpega até os portões escancarados do templo de Valerie. A princesa olhou para o céu escuro, a tempestade enraivecida, focando um único ponto no centro de Cadic, “Preciso ir até lá, preciso proteger Cadic”, e seu suor pingava febril sobre seu rosto. “Ofélia, não…”, Aurora  implorava, mas a monge teimava, seu próximo passo foi dado com dificuldade. Samira tentou arranjar forças para arrastar-se mas seu fôlego misturava ar e sangue em fortes golfadas, deixou a gravidade fazer seu serviço e desabou no chão do templo, incapaz de sussurrar qualquer alerta. Adhraim derramava lágrimas, não queria sair do abraço de sua amada, sua vontade era implorar à deusa para que tudo acabasse… e Ofélia dava um novo passo.


Os pés descalços da monge se firmaram no chão molhado da chuva e as poças de água eram tingidas pelo seu sangue. Deu mais um passo, alcançou as escadarias, longas escadarias. Ofegando conseguiu dar seu quinto passo, sentindo mil agulhas se enterrarem nos poros. Olhou para o céu, a chuva não cedia, os relâmpagos continuavam ameaçando tudo e, agora, feras aladas caminhavam no ar espalhando destruição. Cerrou os punhos com força, irada, suas faixas, agora retalhos, derramavam-se no vento, seus cabelos prateados acompanhavam o sopro da tempestade e ela continuava a olhar para o céu, cheia de fúria, gritou: “CADIC NÃO VAI CAIR!” e sua voz foi trovão.


A ameaça foi ouvida pelas feras aladas, elas grasnaram entre si, reconheciam a princesa, um sacrifício em potencial para a Mortalha, cravaram as garras em suas glaives e lanças e investiram contra a guerreira. Ofélia, tonta, cambaleante, levantou os punhos numa posição de defesa ineficaz e esperou o retaliar da morte… que não veio. A primeira das feras aladas foi partida em dois por uma espada tão pesada que seu resvalar no céu e no chão criaram uma vibração sônica, uma sombra ágil saltou das estruturas demolidas do templo e alcançou um segundo alado, cravando uma lâmina curta em sua garganta, por fim, um lobo de pelagem prateada rasgou carne e asas de uma terceira vítima, uivando e lacerando com furor, “Não tema princesa Ofélia, chegou aquele que acabará com tudo!”, anunciou a magnânima voz de um guerreiro de músculos avantajados e cabelo bem penteado, “Onyx…”, Adhraim sussurrava, ainda deitado sobre o colo de Aurora. Juntou-se ao garboso guerreiro um halfling com capa de chuva e lâminas sangrentas (Finn) e o lobo feroz (Tessah), “Descanse e recuperem suas energias”, disse Finn, “a gente cuida do resto”.


***
O colosso uivava de dor, seu corpo agora estava cravejado pela magia inimiga e mutilado por uma estratégia que, passo a passo, havia dado certo. Ele caiu como um passarinho na armadilha. Seu corpo de pedra e carne estava no chão, sua foice, tão gigante quanto ele próprio, girou suspensa no ar e caiu no chão sulcado. O ódio e a humilhação faziam seu sangue borbulhar… era hora de revidar. Com sua garra direita, arrancou o gigante de ferro de seu peito, apertou-o com força monolítica, amassando o construto como quem amassa uma lata, e o arremessou muitos metros de distância, junto com os gêmeos gnomos. A máquina ambulante aterrissou despedaçada e inerte, um dos gnomos esmoreceu na queda, o outro foi ao seu encontro e o arrastou para o esconderijo mais próximo.


Em seguida, usando ambas as mãos, o colosso agarrou-se à coroa de espinhos que lhe circundava o pescoço, puxou-a com força inigualável e ergueu o corpo do ente às alturas, jogando-o no chão sob sua submissão. Thallion disparou mais uma de suas flechas nas fendas da armadura e, mais uma vez ela tornou-se uma estaca do tamanho de um carvalho. O urro de fúria do colosso rasgou o céu e superou toda a cacofonia trovejante, seus músculos enrijeceram e a pele expulsou cada uma das estacas presas ao seu corpo, as pequenas sprites se afastaram amedrontadas, o elfo acompanhou um de seus carvalhos, surfando em cima dele, até que este aterrissasse muitos metros distante do colosso.


O colosso foi ao encontro de sua arma, encontrou-a mergulhada na lama e quase oculta pela névoa. O ente se erguia atordoado e ao virar-se novamente para o confronto, foi surpreendido pelo golpe arrasador da foice. A lâmina ceifou a madeira criando um talho descomunal e arremessando a árvore guardiã na direção do rio das lágrimas. De lá, ela não se ergueu mais.


Por fim, com a garra desocupada, o colosso alcançou os vestígio do mármore perfurante que lhe atravessara o peito, arrancando o resto da estátua que lhe rasgara a carne e deixando jorrar de lá seu sangue negro como uma cachoeira.


***


“Estejam preparados, irmãos”, os seis médicos da praga agora se organizavam em um círculo perfeito no topo das colinas enevoadas. O cântico da deusa Velaska foi entoado, suas vozes alcançaram grandes alturas, uniram-se as mãos, amaldiçoaram o inimigo e gritaram em uníssono: “SANGRE!”


De todos os muitos ferimentos do colosso, o sangue negro jorrou em jatos violentos que alcançaram as nuvens e derramaram-se como uma cascata no chão empoçado. A criatura cedeu ao peso da dor sagrenta por um instante, segurou firme sua arma e a arremessou contra as colinas num esforço que, até para ela, custou  muito. A foice rodopiou criando um vórtice medonho e atingiu o topo da colina onde se reuniam os clérigos de Velaska, que mergulharam na névoa oculta para não mais aparecer.


***
Não havia mais desafio. Todos os inimigos do colosso haviam tombado, restava apenas as pequenas formigas que dano nenhum poderiam causar ao seu corpo. O sangue negro ainda jorrava aos borbotões, ele destruiria tudo antes do fim, esmagaria e afogaria a todos, como foi ordenado, e mesmo que a vida lhe esvaísse, ele se ergueria de novo sob as bênçãos da Mortalha. Urrou triunfante, virou-se para o pequeno grupo de soldados e paladinos sobreviventes no distrito de Forte Decker e decidiu que era lá que começaria o fim… não notou as duas presenças imponentes e gigantescas que lhe flanqueavam além da tempestade.





As asas dos serafins alçaram, as nuvens negras começaram a se afastar e os tímidos raios de sol ousaram aparecer… Havia duas estátuas monolíticas erguendo suas espadas vingativas. Havia nestas todo o poder de guerra da Inquisição Élfica...


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