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Atticus, o identificador |
A Taverna das Nove Flechas era
névoa e penumbra. Mesas, cadeiras e balcão esquecidos num plano de fundo.
Fogueira tímida acesa na lareira. Nove crianças amedrontadas sufocando a mãe
zelosa. Três homens-hiena soprando fumaça de seus cachimbos e criando a
proteção fantasmagórica. Um cadáver enrolado em trapos estendido no chão de
madeira. Samira, Gôbe e Atticus trocando olhares evasivos.
Castelo
Cinzento resmungava algo com o cacique dos homens-hiena. Ele sabe falar o
idioma do povo selvagem. A conversa é breve e ele volta a falar com Samira:
- O cacique disse que a névoa
fantasma cuidará para que o corpo de Sapphire não apodreça.
Samira agradece em silêncio. Há trapos enfaixando os ferimentos dela. Ada, a mãe zelosa, havia
feito aqueles curativos e dito: “Esse unguento ajudará o seu corpo a eliminar o
veneno mais rapidamente”. Samira descansava.
Gôbe está calado, preso nos
próprios pensamentos. Silêncio que não agrada a Samira. Ocorreu algo há menos
de meia hora e a paladina não sabe como reagir à presença do gnomo. “Sujeito
confiável?”, ela pensa. Mal percebe o olhar curioso de Atticus, o anão.
- É uma boa arma. Você sabe mesmo
manejá-la? – ele viu a espada que Samira havia recebido de Sapphire a pouco
tempo atrás. Quando ela estava viva.
Pergunta retórica que Samira não
conseguiu estimar. Retruca:
- Sei muito bem. E você? Sabe
usar esse machado?
O machado de Atticus é bem
forjado. Afiado. Vistoso. No gume vê-se o desenho da bocarra de um dragão pronto a baforar . Atticus sorri torto:
- Nem é meu. É do meu irmão. Ele
sabe manejar, eu sei forjar.
“Hum”
Samira não consegue ficar em silêncio
com seus pensamentos. Coisa que Gôbe sabe fazer muito bem.
“O que se passa na
cabeça dele?”
“Não importa. Não há momento para
diálogo agora”.
Ela se levanta e pede emprestado
uma estopa e um balde com água a um dos meninos. Eles servem ela prontamente.
Ela, então, senta-se em uma cadeira, apoia seu escudo sujo no joelho, molha bem
o tecido grosso e o banha. Limo e sujeira escorrem e o escudo ganha cara nova.
O símbolo de Splendor ressurgindo. Uma espada e um anjo.
- Onde você conseguiu esse
escudo? – Atticus interrompe. Ela já havia esquecido da existência dele ali.
- Perdi meu escudo mais cedo.
Este será um bom substituto. Encontrei ele em frente ao Templo de Splendor.
Atticus se aproxima, analisa e
chega a uma conclusão:
- O escudo de Halig, o porteiro –
havia tristeza nos olhos de Atticus após a revelação.
- Como?
- Halig, o porteiro. Também, por
causa dele, estou vivo. Deduzo que você não tenha pilhado este escudo, que o
tenha tirado de um cadáver.
- Sim.
- Então, Halig está morto.
- Creio que sim.
Mais névoa, silêncio e angústia.
Quem torna a argumentar é Samira:
- Que tipo de ligação um anão do
comércio e um paladino de Splendor têm?
- Nenhuma. A não ser a das
últimas horas, quando Halig me protegeu, e a outros, quando tudo isso
começou.
- Conte-me mais.
- Quando tudo ficou cinzento e as nuvens relampejaram, eu sabia que alguma coisa ruim estava para
acontecer. Meu rumo foi para o Templo de Splendor, porque sou conhecedor o
suficiente para saber que são os servos desse deus humano que mais poder têm
sobre o mal que rasteja. Eu fiz uma escolha sábia. Isso também me garantiu a sobrevivência. Minha sorte, minha escolha, vocês e também Halig. Havia alguma
coisa no céu infernal que desejava intensamente o templo.
- Esta coisa foi derrotada.
- Então, Halig foi vingado.
- Continue.
- Halig protegeu a mim e a uma
dezena de indefesos, ou mais. Brandiu sua espada. Ela emitia brilho sagrado,
mas o anjo de asas negras, que era a coisa que queria o templo, assou a arma em
brasas infernais. Ela foi destruída. O paladino do seu deus, então, comandou aos
indefesos: “Protejam-se! Entrem no templo”, e a isso todos obedeceram. Eu não consegui.
Um raio de chamas verdes, vindo do céu, interrompeu meu movimento. Halig,
então, brandiu este escudo contra o servo do mal. Labaredas irromperam-se da
lâmina infernal do inimigo, mas o escudo resistiu, duas vezes. Então escondi-me.
- O que aconteceu depois?
- Não me lembro com segurança. A
memória trabalha diferente quando se está aterrorizado. Talvez, Halig e o diabo tenham lutado durante mais algum tempo. O anjo de asas negras roubou
a magia desse escudo, sei disso, esse aço não aguentaria outra brasa daquele
poder do inferno. Não é o mesmo de antes.
- Então, este é um escudo mágico?
- Era. Ainda assim, um escudo que
serviu muito bem para proteger inocentes.
- O que mais aconteceu?
- Halig gritou praguejando contra
o inimigo e isso eu escutei já longe: “Darei a minha vida para que não possua
este templo, criatura do abismo!”. Dito isso, houve um tremor na terra e os
enormes portões da frente do templo se fecharam.
- Um sacrifício selou a entrada
do Templo de Splendor?
- Não creio. Não me pareceu.
- Então, o quê?
- Quer que eu fale o que pude
deduzir?
Samira consentiu afirmativamente.
- Sou um anão e anões sentem as rochas.
Elas muito podem nos contar. Ali uma delas me revelou algo: o mármore que
compunha a estátua de seu rei, no lado exterior do templo, é o mesmo que
compunha a estátua monolítica de Splendor no interior deste.
- Isso deveria significar algo?
- Pode significar tudo.
Samira pôs-se a pensar.
- O diabo conseguiu entrar no
templo e profanou a entrada.
- Aqui, em meio a essa
tempestade, eles ficam mais fortes.
- Havia uma magia de morte que
protegia a entrada do templo. Minha amiga morreu por causa disto.
- Eu sinto muito.
Silêncio.
- Luto por ela agora. Luto por
muitos.
- Honre-a, então.
Samira olhou para o escudo. O
escudo de Halig.
- Matamos o diabo, então, a magia
desse escudo deveria ter retornado.
- Não funciona assim. É preciso
despertá-lo.
- Como faço isso?
- Não sei. Um clérigo de
Splendor, talvez. Um frasco de água benta criada por um alto sacerdote. Água
sagrada, pura e límpida. Água que lave mais do que o limo e o sangue nesse
escudo.
Samira recostou-se na cadeira
pensativa. Ela seria capaz de chegar a uma resposta diante tudo?
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