Os portões do templo - Episódio extra: 20/01/2019

Atticus, o identificador


A Taverna das Nove Flechas era névoa e penumbra. Mesas, cadeiras e balcão esquecidos num plano de fundo. Fogueira tímida acesa na lareira. Nove crianças amedrontadas sufocando a mãe zelosa. Três homens-hiena soprando fumaça de seus cachimbos e criando a proteção fantasmagórica. Um cadáver enrolado em trapos estendido no chão de madeira. Samira, Gôbe e Atticus trocando olhares evasivos.

Castelo Cinzento resmungava algo com o cacique dos homens-hiena. Ele sabe falar o idioma do povo selvagem. A conversa é breve e ele volta a falar com Samira:

- O cacique disse que a névoa fantasma cuidará para que o corpo de Sapphire não apodreça.

Samira agradece em silêncio. Há trapos enfaixando os ferimentos dela. Ada, a mãe zelosa, havia feito aqueles curativos e dito: “Esse unguento ajudará o seu corpo a eliminar o veneno mais rapidamente”. Samira descansava.

Gôbe está calado, preso nos próprios pensamentos. Silêncio que não agrada a Samira. Ocorreu algo há menos de meia hora e a paladina não sabe como reagir à presença do gnomo. “Sujeito confiável?”, ela pensa. Mal percebe o olhar curioso de Atticus, o anão.

- É uma boa arma. Você sabe mesmo manejá-la? – ele viu a espada que Samira havia recebido de Sapphire a pouco tempo atrás. Quando ela estava viva.

Pergunta retórica que Samira não conseguiu estimar. Retruca:

- Sei muito bem. E você? Sabe usar esse machado?

O machado de Atticus é bem forjado. Afiado. Vistoso. No gume vê-se o desenho da bocarra de um dragão pronto a baforar . Atticus sorri torto:

- Nem é meu. É do meu irmão. Ele sabe manejar, eu sei forjar. 

“Hum”

Samira não consegue ficar em silêncio com seus pensamentos. Coisa que Gôbe sabe fazer muito bem. 

“O que se passa na cabeça dele?”

“Não importa. Não há momento para diálogo agora”.

Ela se levanta e pede emprestado uma estopa e um balde com água a um dos meninos. Eles servem ela prontamente. Ela, então, senta-se em uma cadeira, apoia seu escudo sujo no joelho, molha bem o tecido grosso e o banha. Limo e sujeira escorrem e o escudo ganha cara nova. O símbolo de Splendor ressurgindo. Uma espada e um anjo.

- Onde você conseguiu esse escudo? – Atticus interrompe. Ela já havia esquecido da existência dele ali.

- Perdi meu escudo mais cedo. Este será um bom substituto. Encontrei ele em frente ao Templo de Splendor.

Atticus se aproxima, analisa e chega a uma conclusão:

- O escudo de Halig, o porteiro – havia tristeza nos olhos de Atticus após a revelação.

- Como?

- Halig, o porteiro. Também, por causa dele, estou vivo. Deduzo que você não tenha pilhado este escudo, que o tenha tirado de um cadáver.

- Sim.

- Então, Halig está morto.

- Creio que sim.

Mais névoa, silêncio e angústia. Quem torna a argumentar é Samira:

- Que tipo de ligação um anão do comércio e um paladino de Splendor têm?

- Nenhuma. A não ser a das últimas horas, quando Halig me protegeu, e a outros, quando tudo isso 
começou.

- Conte-me mais.

- Quando tudo ficou cinzento e as nuvens relampejaram, eu sabia que alguma coisa ruim estava para acontecer. Meu rumo foi para o Templo de Splendor, porque sou conhecedor o suficiente para saber que são os servos desse deus humano que mais poder têm sobre o mal que rasteja. Eu fiz uma escolha sábia. Isso também me garantiu a sobrevivência. Minha sorte, minha escolha, vocês e também Halig. Havia alguma coisa no céu infernal que desejava intensamente o templo.

- Esta coisa foi derrotada.

- Então, Halig foi vingado.

- Continue.

- Halig protegeu a mim e a uma dezena de indefesos, ou mais. Brandiu sua espada. Ela emitia brilho sagrado, mas o anjo de asas negras, que era a coisa que queria o templo, assou a arma em brasas infernais. Ela foi destruída. O paladino do seu deus, então, comandou aos indefesos: “Protejam-se! Entrem no templo”, e a isso todos obedeceram. Eu não consegui. Um raio de chamas verdes, vindo do céu, interrompeu meu movimento. Halig, então, brandiu este escudo contra o servo do mal. Labaredas irromperam-se da lâmina infernal do inimigo, mas o escudo resistiu, duas vezes. Então escondi-me.

- O que aconteceu depois?

- Não me lembro com segurança. A memória trabalha diferente quando se está aterrorizado. Talvez, Halig e o diabo tenham lutado durante mais algum tempo. O anjo de asas negras roubou a magia desse escudo, sei disso, esse aço não aguentaria outra brasa daquele poder do inferno. Não é o mesmo de antes.

- Então, este é um escudo mágico?

- Era. Ainda assim, um escudo que serviu muito bem para proteger inocentes.

- O que mais aconteceu?

- Halig gritou praguejando contra o inimigo e isso eu escutei já longe: “Darei a minha vida para que não possua este templo, criatura do abismo!”. Dito isso, houve um tremor na terra e os enormes portões da frente do templo se fecharam.

- Um sacrifício selou a entrada do Templo de Splendor?

- Não creio. Não me pareceu.

- Então, o quê?

- Quer que eu fale o que pude deduzir?

Samira consentiu afirmativamente.

- Sou um anão e anões sentem as rochas. Elas muito podem nos contar. Ali uma delas me revelou algo: o mármore que compunha a estátua de seu rei, no lado exterior do templo, é o mesmo que compunha a estátua monolítica de Splendor no interior deste.

- Isso deveria significar algo?

- Pode significar tudo.

Samira pôs-se a pensar.

- O diabo conseguiu entrar no templo e profanou a entrada.

- Aqui, em meio a essa tempestade, eles ficam mais fortes.

- Havia uma magia de morte que protegia a entrada do templo. Minha amiga morreu por causa disto.

- Eu sinto muito.

Silêncio.

- Luto por ela agora. Luto por muitos.

- Honre-a, então.

Samira olhou para o escudo. O escudo de Halig.

- Matamos o diabo, então, a magia desse escudo deveria ter retornado.

- Não funciona assim. É preciso despertá-lo.

- Como faço isso?

- Não sei. Um clérigo de Splendor, talvez. Um frasco de água benta criada por um alto sacerdote. Água sagrada, pura e límpida. Água que lave mais do que o limo e o sangue nesse escudo.

Samira recostou-se na cadeira pensativa. Ela seria capaz de chegar a uma resposta diante tudo?

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