A cada ser cabe uma ideologia. Isso
é fato e espero que não se engane: todos têm o poder e o direito de pensar. Como nomearam os teóricos de Mordae, esta é a lei do filósofo. Todos pensam e
chegam a conclusões mesmo enquanto limitados às suas mentes cheias de amor e
ódio. Decerto não somente este par de sentimentos têm gerado toda a balbúrdia neste
mundo, é o que venho assistindo com cem olhos atônitos. Buscar a verdade no coração
de cada ser pensante é sempre paradoxal. Certeza nada motivadora, de fato, mas
nos concentremos nas figuras que agora percorrem o tapete verde de Azran. Um borrão com três personagens:
A
montaria – um cavalo leve acostumado a fortes rajadas de vento – se orgulha da lealdade
que tem para com sua amazona, embora o suor que escorre em sua pelagem já seja demasiado, embora acuse a dor lancinante em seus cascos sangrentos. Ele tem certeza de seu serviço, mesmo enquanto a grama rasa que
resvala em suas patas começa a parecer pequenas navalhas torturadoras. O
coração da montaria dispara acompanhando o retumbar de seus próprios cascos,
mas um sentimento que muito se questiona existir em um animal, é o responsável
por motivar seu esforço físico. Algo no interior de sua amazona retumba mais
rápido que sua dor.
O medo é uma paixão reacionária de
sobrevivência. Não a contraria, apenas segue o curso por ser racional e, há
quem questione isso enterrado em seu túmulo, mas há sempre duas verdades. Uma
fera, nada acostumada a estar acuada, mastiga esse sentimento e o compensa com
rancor, pois nunca foi acostumada a tratar com desdém essa questão e nunca
busca se defender com ironias. Isso acontece gradativamente, conforme a
cadência de seu peito cheio de palpites a estorva. Tem, em suas costas, as
espadas tingidas de sangue para demonstrar sua utilidade aos outros e um peito
ainda retumbante para demonstrar a certeza para si mesma.
Neste
momento a pele da amazona é mera cartilagem sobrevivendo às insistentes rajadas
de vento que passaram a ser inimigas razoáveis quando comparadas à ardência, às vezes bendita do sol. Mas a pele, especialmente a das mãos, tantas
vezes utilizada como o escudo que protege as retinas, segura os estribos enquanto
se desmancha. Nada pode parar, pois o toque denunciador em seu peito só a
impulsiona.
Eis que ela sente unhas cravadas em
sua cintura e lembra-se que a solidão não pertence a ela naquele momento. A dor
nem se equipara aos chorosos soluços engasgados no indivíduo de sua sela e,
embora inepta no ato de sentir dó, reconhece que se suas virilhas ardem, a do
garoto no lombo da montaria assam. Decide parar, sem mais avisos.
Já
com o cavalo parado – e este satisfeito pelo serviço – o menino despenca no
chão agonizando com as mãos entre as pernas.
—
Fique aqui – a amazona rasga insensivelmente.
E com passos de lobo e visão de
águia espreita a planície infértil de vida e nos prova a antítese disto
trazendo de volta um par de coelhos.
—
Uma árvore é mais casa do que o relento. Levante-se. Vê aquela sobrevivente da
planície? É ali onde passaremos a noite.
A amazona guiou o cavalo e o garoto
permaneceu no mesmo lugar por pelo menos mais meia hora, até que, trôpego,
arrastou-se até o canto onde a amazona já havia preparado a fogueira e o tapa vento
noturno. Uma árvore sobrevivente no meio da planície.
O garoto deitou-se e vagarosamente
acostumou-se com a dor, pois sabia que deveria encontrar alguma harmonia nisto –
passaria o próximo dia sob as mesmas condições de hoje – e invejou a amazona
que o havia guiado para longe da morte, em direção à sobrevivência. Impassível
de aflição. Cada músculo acostumado a sobreviver.
O
silêncio bem correspondia ao período de luto. Sim, era um período de luto,
embora a amazona não demonstrasse tal compatibilidade. Todavia, em meio aos
jovens, o silêncio é inoportuno e a voz cresce com a fala do garoto:
—
Certa vez, Van d’Van me falou sobre a importância de nomear coisas, o poder que
o nome traz e doa para tudo. Ele é Van, filho de Van e Van é o nome de nossa
aldeia. Me disse como isso é capaz de gerar conflito entre os irônicos e
admiração entre os curiosos, pois o nome do lugar no qual cresci traz consigo
uma história e seus filhos são instigados a contar. Foi Van, pai de Van, que
ensinou sobre heroísmo ao filho e seu filho, certa vez, compartilhou isso
comigo. Percebi, na mesma hora, o quanto um nome tem poder no julgamento das
pessoas. Eu me chamo Laelsen, ou somente Lael, pois a última sílaba, um dia me
contaram, significa “filho de...” e isso é o que sou: “filho de Lael” e Lael,
nada mais é que um anagrama de “leal”, o “filho do leal” ou “filho leal”, o que
mais vier a calhar. Qual o seu nome, elfa?
A
amazona, agora elfa batizada aqui pelo conhecimento do garoto, pareceu estudar
as palavras certas e incluiu nestas bastante arrogância, que é típica e
incompreendida natureza da raça:
—
Eu não sou o que você anseia, não estou aqui para satisfazer as suas
ideologias, não sou uma heroína. As espadas que eu empunho não são em nome da
justiça, fé, lealdade ou bondade... Não busco ou defendo amores, não faço
amizades. Não vou com a sua cara! E eu já estou na estrada a algum tempo. E te
digo, fedelho, isso não é para qualquer um! Existem aqueles que são movidos e
se autoenganam achando que estão mudando algo, fazendo o bem... Estes vivem na
ilusão que o mundo vai melhorar. Tenho pena, confesso. Outros só observam ou
querem ver a merda toda acontecer. E sabe o que é pior? A merda vai
acontecer... E eu não estou preparada para isso!
As chamas crepitaram e o garoto,
assustado pela impulsividade de sua salvadora, quis desacreditar que aquelas
palavras, neste instante vomitadas, provocaram reação no fogo, como se saliva
fosse pólvora, mas eu os olhava curioso como sempre e agora sei o que as chamas
queriam. Talvez lamber aquele destino proferido.
O
menino, então, se adaptou ao silêncio, como havia se adaptado a dor pouco antes,
e permaneceu assim pelo tempo que lhe conveio. Já muito da noite havia corrido
quando percebemos que nem o silêncio, nem o cansaço são capazes de adormecer
uma mente ocupada, pois tão desassossegado estava o garoto que a esta hora tirava
de seu bolso uma pequena faca com cabo de osso, tão pequena que parecia se
perder em meio aos seus dedos. A elfa, há muito, posicionara-se em frente da
chama a meditar – pois bem queiramos dizer meditação, pois os elfos não dormem
e sim entram num transe desperto de tal forma que parecem estar a nos vigiar e
impedir que façamos besteiras.
Lael,
pois nos acostumemos a chamar a figura pelo nome, segurou a arma
pretensiosamente – nunca desconfie da boa confiança das crianças – e para mim
nada de conflitante aquilo parecia, pois nem meus cem olhos prediziam o que a
mente diáfana de um garoto que acabara de presenciar a morte poderia pensar.
Talhou um rasgo no tronco da árvore, depois outro e mais outro, na pretensão de
criar a cicatriz mais profunda. Acaso que não ocorreu, pois nem chegara a
quinta estocada quando a elfa ergueu-se e desarmou Lael com uma de suas espadas,
ferindo o dedo do garoto inofensivamente. Ele ganiu numa dor que simbolizava muito
mais a surpresa do que a injúria física.
—
Esta árvore não carrega a culpa de seus pensamentos, garoto. Não ouse descontar
na natureza a ignorância por trás de sua existência. Esta árvore vive aqui há
muito tempo, todas as demais abandonaram o lugar, incapazes de se adequar ao
solo e ao calor. Na sua frente temos a sobrevivência, ímpar e resiliente. Este
será o meu templo ao amanhecer e aqui, minha deusa me garantirá as bênçãos de
sua proteção.
Acuado, Lael mergulhou num novo
silêncio. Sentado, olhando para a chama por muito tempo, se afogando nos
próprios pensamentos, idealizando todos aqueles involuntários ensinamentos.
Perdeu-se, tão tarde, no sono e acordou cheirando a fumaça e ofuscado por
repentinos raios de sol.
—
Coma rápido! – indicou a elfa, pois já havia desempenhado muito bem seu papel
de caçadora provendo mais dois coelhos gordos ao menino.
Lael se refestelou como se aquilo
fosse um banquete, enquanto a elfa contemplava o novo dia e apagava de si a
tragédia de outrora. Agradecia a dádiva de ainda estar viva. O garoto pisava
desastrosamente nas fagulhas do que restava na fogueira que o aquecera durante
toda a noite e, tão rápido quanto o desaparecimento do alaranjado ígneo das
brasas, um soco de pensamento lhe veio à mente:
—
Eu encontrei a contradição! – ele exclamou exasperado e a elfa nem sequer sabia
o que aquele garoto estava tentando dizer.
Ele
adiantou-se inquieto, uns seis metros distante da árvore das bênçãos e abriu os
braços, como se prestes a alçar voo e disse:
—
Não consigo ver outra árvore, a não ser esta!
—
Não há outra árvore dentro de uma distância a qual você possa enxergar.
—
Isso mesmo! Esta árvore está sozinha. As outras decidiram ir embora.
—
Como eu disse esta noite... agora, sente no cavalo, temos uma longa viagem.
—
Não entende? – o garoto teimou – a principal característica desta árvore não é
ser sobrevivente. É ser solitária! A quem importa tamanha resiliência a não ser
para si mesma? E de que adianta viver em um mundo onde seu arredor não passa de...
grama rala, sol ofuscante e rajadas de vento invisíveis? A mim, não parece adequado. Eu morreria com as
outras. Digo, com as outras árvores, entende? Desde que no horizonte distante,
naquela direção, exista uma floresta ou um bosque. Um bosque gigante no qual
meus filhos e irmãos, como um só, tenham um nome! Um nome que garantirá a eles
a união. Que dê a eles um futuro! Eu não me importaria em ser o herói deles –
acrescentou com um sorriso contrastante.
Sentou-se
na montaria esboçando a felicidade dos tolos. Que é a que sempre resta. Então,
galoparam em direção ao horizonte não tão distante: o bosque de Cadic.
Nas próximas horas, desciam ambos da
montaria, pois a grama rala misturou-se às árvores vivas e verdejantes que
indicavam as terras de Cadic, lugar em que o garoto iria passar seus próximos
dias, até quando, mal se sabe.
—
Você fica aqui, menino. Encontrará abrigo na inquisição, seguindo aquele
caminho. O bosque é seguro se caminhar por ali. Ao chegar lá, dirá aos outros
elfos que eu o trouxe até aqui e que lhe prometi proteção, abrigo e comida.
A elfa voltou a montar-se e a cabeça
de Lael foi inundada de perguntas. A seguinte foi a primeira que saiu:
—
E para onde você vai?
—
Fazer aquilo que deveria ter feito a algum tempo, mas este feito se encontra na
direção de outro horizonte...
Deu meia-volta com seu fiel cavalo –
para ele o serviço lhe era toda honra de existir – e antes que pudesse partir,
obrigou-se a responder mais algo ao menino, pois ele perguntara:
—
Qual seria o nome da heroína que me trouxe à Cadic, para que eu possa falar aos
elfos que irão me hospedar?
Ainda de costas, esboçando um
legítimo sorriso, símbolo de um dar de ombros, ela disse:
—
Me chamo Sapphire e sou a chama azul.
E prosseguiu a nova partida.
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