O fim de uma jornada e a segunda vida

Muito além das Montanhas de Mármore existe o templo de Anthrahax.

Presumo, nestes dias difíceis, que a Ordem Arcana esteja errada em muita coisa, mas tenho que concordar com a visão dela no que se refere às nossas "preciosas" divindades: os deuses se alimentam do sofrimento humano enquanto regozijam de suas próprias existências, assistindo seus súditos se sacrificarem como num jogo de tabuleiro, onde o movimento de uma peça suicida ajuda a vencer o passatempo. Quando as preces de minha senhora, Lady Magdalen, exigiram deste grupo uma jornada tão laboriosa, questionei (apenas comigo mesmo e minha consciência de gente infame) a que ponto poderia chegar um ato que pudesse chegar a um simples chamado de providência divina. 

Eu vi as luzes de esmeralda tingirem o céu naquela noite. Não houve barulho, apenas o clarão de um farol que apontava sua luz para cima, além das nuvens, talvez, até mesmo além das estrelas. Depois daquilo eu pude sentir a treva mergulhar naquela trilha montanhosa. Rios de escuridão, jorrando como sinuosas serpentes de frio. Mas são meus olhos, cheios de imaginação mágica, que puderam dar forma àquilo. É um prenúncio. Uma forma que meu sangue encontrou para alertar-me contra o perigo. Olhos de fantasma.

A treva arrastou-me as esperanças de voltar a ver aquele grupo novamente, mas ela não foi o suficiente para Lady Magdalen, a fervorosa mãe religiosa, crente na mais mínima das esperanças. Isto é fé. Às vezes a invejo por sua capacidade de acreditar no impossível. É isso que os devotos de deus fazem: acreditar na menor das chances e, quando isso acontece, divulgam o milagre aos seus companheiros e chamam de providência divina.

Ela estava certa, afinal.

Eu os vi duas semanas após o trovão divino. Um ecoante e ensurdecedor estrondo que ocorrera sem aviso prévio, sem anúncio de chuva ou vislumbre da claridade de um relâmpago. A pele deles estava suja, arranhada e cheia de hematomas. Estavam tão cinzas quanto o céu e a única coisa que brilhava em cada um deles era o sorriso de alívio por terem terminado a jornada.

"Enfim, vocês são heróis bem sucedidos. A mim, vocês já conhecem. Sou Octavus Theomund, o mestre da magocracia de Brastav e o último guia dessa jornada. Reservem seus mais vigorosos fôlegos para o Templo de Anthrahax, pois estamos muito próximos da proteção dele."

Eles nem se preocuparam em me fazer perguntas. Muito menos me analisaram como um possível último desvio da missão. Estavam ansiosos para receberem o espólio. O retorno de uma alma a muito atormentada. Eu não os julgo.

O Templo de Anthrahax é o covil de um dragão. Seus imensos e majestosos portões de mármore abriram-se com a pronúncia das palavras certas que eu conhecia. A claridade sagrada emanou do interior da estrutura revelando um lugar de paz e segurança onde finalmente o grupo permitiu-se desabar de cansaço. Eu respeitei aquele momento de prazer mortal.

Nenhuma estátua de anjo ergueu sua espada contra aqueles heróis. Nenhuma armadilha foi empecilho durante a última marcha daqueles que terminaram a jornada e o ouro cintilante foi a cor que eles enxergaram no final do túnel. Um mar de ouro e prata, adornado de ricos ornamentos, longas tapeçarias de veludo, quadros do mais alto teor artístico, espadas cravadas em dunas de peças áureas. Porém, nem toda a onda de tesouro era mais magnificente que a presença do próprio Anthrahax, com sua pele de claro cobre e o ar quente e agradável que ele transpirava de suas escamas e largas narinas.

Anthrahax ergueu-se tão imponente como um imperador observando seu exército de fiéis guerreiros. Orgulhoso das conquistas mortais. Suas asas abriram-se e um riacho de peças de ouro deslizaram sobre elas. O brilho de suas escamas ofuscou os heróis que tiveram que se acostumar com a exposição quase solar de calor e luminosidade que partia da criatura dracônica.

"Sejam bem-vindos ao meu covil, heróis. A alma de seu amigo paira aqui, sob minha proteção, mas minha guarda é temporária e o espectro daquele que vocês pretendem salvar precisa ser direcionado à luz certa".

A luz estava lá e era tão imponente quanto à do dragão. Resplandecia de minha senhora, Lady Magdalen, a rainha que agora estava vestida com trajes cerimoniais e a máscara dourada que representava uma antiga religião. Ao seu lado, como sentinelas sempre fiéis, estavam Yin Yamanaki (aquela que chamam de Punho de Deus e responsável pelo treinamento monástico de Ophellia, princesa de Azran) e um entristecido e velho Lorde Irun, devorado pelo tempo, mas teimosamente resistente à morte. 

Lorde Albion, o rei, novamente não comparecia ao episódio que acercava suas progênies. Um pai que anda ocupado demais para o ressurgimento de um filho me faz temer esses tempos. Que uma coisa fique bem clara: meu rei é justo e ama seus filhos. Daria a vida por eles. Qualquer coisa que o tenha deixado ausente a este acontecimento deve ser de extrema importância e, por consequência, algo que afetará o reinado. Os reis de hoje precisaram se acostumar com a corda bamba que é governar sua pátria.

Não houve espaço para uma máscara que cobrisse o rosto de minha senhora. Lady Magdalen livrou-se do artefato e permitiu que os heróis vissem as lágrimas de humildade e sofrimento que escorriam pela sua face divina. Às pressas, ela correu até a filha e a filha fez o mesmo. Elas se abraçaram e o choro transformou-se em soluço e alento. O restante do grupo se comoveu (mesmo os de expressões mais pétreas).

O esquife que manteve o corpo de Alberich foi depositado no centro de um círculo cravado no chão. Desenhado pelas poderosas garras de Anthrahax. Castiçais e objetos de unção foram retirados do tesouro do dragão para que a cerimônia de ressurreição pudesse iniciar.

Então, eles vieram na forma de estátuas. Cinco estátuas angelicais das câmaras do covil de Anthrahax. Corpo e asas de pedra, lâminas de aço luminescente, olhos de brilho eterno e voz celestial.

"Servimos à rainha e a purificação do divino que há nela. Aceitamos ser a luz que trará seu filho de volta à terra."

A pele de rocha rachou, permitindo a passagem da luz que emana das peles alvas dos anjos. Cada partícula de pedra tornou-se pó e um sopro divino o carregou para longe da câmara. Eram anjos de Splendor. Anjos do deus justo. A amada divindade de Azran.

Os cinco cravaram suas espadas luminescentes no chão, formando um círculo ao redor do corpo da esquife do príncipe. Eles se ajoelharam, mantiveram suas cabeças baixas enquanto agarrados aos punhos das espadas enterradas e oravam tão baixo que suas vozes tornaram-se unas com o ar.

A esquife foi aberta. Ophellia afastou-se da cerimônia juntando-se aos aliados que se organizaram como uma plateia educada, influenciados pela presença deífica de todos aqueles seres angelicais, o dragão de brilho ofuscante e a senhora de Azran. Dentro do reservatório de repouso, o cadáver do príncipe Alberich estava envolto de trapos e gavinhas da flor amarela que lhe plantaram no estômago para que o corpo não apodrecesse de forma natural. Ele parecia intocado. Quase um santo.

Os anjos entoaram o cântico celeste e foram acompanhados pelo lirismo de perfeita sintonia cantado por minha senhora. As luzes tornaram a ficar mais presentes. As inúmeras velas de cada castiçal foram se apagando, uma a uma. Óleo bento foi derramado sobre a testa do príncipe e todas a luminescência enfim encerrou-se quando a última nota do cântico foi ressoada.

Houve um minuto de silêncio e todos puderam ouvir o primeiro fôlego da segunda vida de Alberich. Ele acordou como se tivesse alcançado as margens seguras de um oceano profundo e recebeu o abraço quente da mãe, regado de suas lágrimas de afago. 

"Acalme-se, meu filho. Você está de volta. O tormento acabou..."

Alberich precisou de algum tempo enquanto se acostumava com o fôlego da nova vida.

"Eles me viram, mãe! Eu os vi! Eles me querem!"

O filho agarrou forte a mãe. O único momento de segurança que ele possuía depois de tanto tempo, então, eu pude sentir, minha senhora também pôde sentir, que a bênção de Splendor havia se esvaído do corpo e da alma do príncipe. Ele não tinha mais poderes.

"Agora você está em segurança... pra sempre, meu querido. Para sempre..."

Mas meus olhos não se enganaram e minha mente evoluiu para especular. Eu sei que aquela cena foi o estopim para uma nova onda de acontecimentos... e, talvez, o mundo não esteja preparado para o que vem... 

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