O arco de sangue-manchado havia
se dobrado, parecia retorcer-se de dor. A flecha fantasma tornara-se névoa e a
morte de Alexia havia sido adiada naquele instante. As folhas secas, que até
aquele momento rodopiavam inofensivamente, formaram um redemoinho violento que
arrastou a portadora da lâmina das bruxas para longe do combate.
- É ele! – exclamou Koku
enquanto protegia sua arma seja lá do que fosse.
A figura que todos pudemos ver
naquele momento era Kairos, aquele o qual Alexia havia nos direcionado a
encontrar. Kairos, o demente, como o povo das cidades civilizadas o chamava,
era uma caótica formação de pele humana e casca de madeira com cabelos
avolumados como uma espessa copa de árvore, alto, desengonçado como uma
oiticica. Foi aquele ser que comandou a natureza para impedir o final repentino
de Alexia. Havia muitas mais histórias sobre o druida insano que se pode contar
numa vida, em sua maioria histórias bizarras que ora fazem dele um herói, ora
um vilão sem decência. Eu esperei, naquele instante, que ele decidisse ser o
herói.
Os fantasmas da floresta
dispararam contra o druida enquanto Alexia erguia-se e tomava a lâmina das
bruxas em mãos. Ela sabia exatamente qual seria seu próximo passo, eu deduzi
isso quando a vi correr para a barreira intransponível de natureza ao redor de
Kairos, protegida pelas feras feitas de galhos e folhas que agora se
desenraizavam do solo ameaçando os fantasmas e meus próprios aliados.
Ulric e Lady Helena ocuparam-se
com as invocações de Kairos. Lady Helena empunhava sua lança e salvava a vida
de um fantasma desocupando-se da missão de me guardar. Eu observava Alexia
ficar distante e senti todo o feitiço dela atuando em mim. No sonho que havia
tido aquela noite, uma estranha figura havia me alertado sobre o encantamento
que Alexia havia me jogado para que eu me tornasse empático a ela e sei que
vocês, meus caros leitores, vão julgar minha próxima decisão como burrice, mas,
não e fácil se livrar de um feitiço, especialmente quando todas as peças se
encaixam e o indivíduo sabe que ele é alguém importante na jornada. Quero
dizer, a que ponto isso iria chegar? Em quê mais eu seria útil? Qual seria a
minha tarefa? Esses questionamentos me afetaram tanto a cabeça que eu ignorei o
fato de estar separando-me de amigos e dos braços de guerreiros que me
protegeriam muito mais do que uma bruxa suicida e um druida demente.
Corri ao encontro de Kairos,
porque era para lá que Alexia estava seguindo.
Ainda nua, Alexia corria para
livrar-se dos fantasmas da floresta que agora haviam decidido disparar somente
contra ela. Kairos pareceu aprovar minha decisão de segui-la e em meio ao
tumulto de ventos, folhas e areia pude ouvir ele falar:
- Quem resistiria a um corpo
jovem esbelto de uma garotinha de cento e oitenta e dois anos! – eu não pude
ver seu rosto, ele estava oculto por uma estranha máscara de madeira, notei
apenas que um de seus olhos era denso e amarelo, sabia o que aquilo
significava. Tenho certeza que ele esboçava um sorriso zombeteiro por trás de
tudo.
- Cento e oitenta e oito! – eu corrigi
e ele se surpreendeu olhando uma segunda vez para o corpo desnudo da bruxa e
emitindo um som que parecia um lobo uivando para lua.
A árvore mais larga no meio do
caminho abriu-se como uma enorme... vagina derramando licor transparente e
gotejante. Foi lá onde Alexia entrou e foi lá para onde a segui. Aquele foi o
meu primeiro transporte entre árvores da vida – quando fiz esse comentário para
Kairos, ele riu desengonçadamente enquanto me questionava: “então, esta foi sua
primeira vez!?” – ele foi o responsável por nos distanciar do embate. Saímos do
“mundo das árvores” imundos e cobertos de limo, vomitando a seiva das plantas,
como bebês que acabavam de sair das barrigas de suas mães.
Alexia ainda tentou se
sustentar em pé, apoiando-se na lâmina das bruxas, mas, finalmente ela desabou
enjoada e exausta, caindo imediatamente num sono profundo. Enquanto me livrava
dos vestígios das árvores deduzi que a lâmina das bruxas havia devorado uma
parte de sua vitalidade – havia marcas de garras nas costas de Alexia, além de
hematomas que só se tornavam visíveis devido ao seu corpo nu.
Olhei ao meu redor e deduzi que
estávamos nos confins da Floresta dos Mil Sussurros, em um lugar desorganizado
e mal cheiroso que Kairos batizou de abrigo temporário. A própria natureza do local
era caótica, com árvores que se contorceram e uniram-se umas às outras na
intenção de formar uma cabana para o druida insano.
|
Kairos, o demente |
Com uma cuspidela, Kairos ateou
uma agradável fogueira no centro de seu abrigo, ergueu uma pedra
conflituosamente confortável para sentar-se e apreciar as chamas agirem como
tentáculos agarrando mosquitos. Eu retirei uma lona de couro de meus
equipamentos – que felizmente haviam se livrado do aguaceiro da viagem pelas
árvores – e cobri o corpo desprotegido de Alexia. Olhei para Kairos e ele me
disparou um olhar reprovador. Voltei meus olhos para a bruxa e para sua lâmina –
eu não possuía naquele momento, nenhuma vontade de empunhá-la – meus pensamentos
se voltaram para as cenas da última luta e estes só foram encerrados quando
ouvi o demente comentar:
- Qualquer um ficaria com medo,
tendo ancas tão pequenas, não acha? – Kairos pousava o queixo na própria mão
enquanto observava meu cavalheirismo, seus olhos eram de cupido.
- Como? – dúvida seria a reação
de qualquer ser ao escutar o comentário de Kairos.
- Quero dizer, olha para as
ancas dela – Kairos gesticula muito enquanto se comunica e muitas vezes seus
gestos não acompanham a ideia geral do assunto – com um ventre tão pequeno
quanto esse, não me admiro que ela seja uma amedrontada. Qualquer bebê que saísse
daí, provavelmente a partiria em dois. Especialmente uma criança que nascerá
com o peso de todo o ego da humanidade!
- Do que você está falando?
- Do medo da sua namorada,
idiota! – minha cabeça agora se confunde e eu não sei se o que estava sentindo
naquele momento, por Alexia, era o feitiço ou uma paixão sem nome. Não podia
ser qualquer um dos dois.
- Porque você acha que ela tem
medo?
- Quem mais agiria feito um
tolo contra os fantasmas da floresta, que não seja um suicida? Ela só pode
estar querendo morrer, é claro – ele deduziu, mas aquilo não era somente uma
suposição, estava claro que Kairos sabia de muito mais. Como vocês lembram, em
meu sonho, Terezza, a mãe de Alexia, apareceu-me como um... ser bizarro e gigantesco,
alertando-me que sua filha desejava a morte, mas, até aquele momento, eu não
havia tido tempo para pensar em qualquer coisa.
- Porque você nos ajudou!? –
minha voz saía sem controle da boca. Eu nunca fui tão impulsivo como fui
naquele momento.
- “Nos ajudou?”. Você quis
dizer: “ajudou ela” – corrigiu o druida – E fique calmo, criancinha, não gosto
da forma que seus olhos estão ameaçadoramente arregalados agora...
Eu me surpreendi com minha
atitude. Sei que minhas palavras não soaram ofensivas, mas meu tom de voz
exigia uma discussão amarga e sem sentido com alguém que carrega a alcunha de
demente. A razão ponderou minha reação e resolvi começar do zero:
- Eu sou Octavus Theomund, mago
da Távola de Azran e sei quem você é. Você é Kairos, o demente!
- De que adianta tantos nomes e
apelidos? – o druida respondeu quase alheio à minha apresentação.
- Preciso saber por que você se
arriscou tanto para salvá-la – tentei ser o mais cordial possível.
- “Arriscou?” – comentou ele,
entre assobios e risos de hiena - eu só desejo dar o que ela quer, mas da forma
certa.
- Você a salvou para ter o
direito de matar ela? – presumi a resposta mais insana.
- Não vou matar ela, só vou
enviá-la à morte certa – para Kairos aquilo parecia fazer todo sentido – senta aqui,
meu querido hóspede, assista a madeira crepitando junto a mim. Ela te revelará
coisas preciosas demais para a sua doentia e falsa curiosidade.
Foi o que fiz. Sentei-me no
chão, em frente à fogueira e à pedra-trono de Kairos. Demorou mais de um minuto
para que as chamas pudessem fazer algum sentido, até lá, contei vinte e um
mosquitos mortos.
O que vi naquelas chamas era
uma história conhecida, mas adornada por uma realidade mais escura e macabra
que a primeira vez que a ouvi. O calor abrasivo da fogueira, a fumaça que eu
inevitavelmente inalava e o torpor de um sono irresistível, turvaram a minha
mente e eu deduzi que estava em meio a uma magia xamânica conjurada por um
louco de riso zombeteiro oculto por uma máscara de madeira.
Os tentáculos ígneos deram
forma a inúmeras figuras distantes que fediam a cinzas de fogueira. Era uma
convenção de bruxas, a convenção do fogo bruxuleante. As bruxas caminhavam em
fila, com suas lanternas de fogo-fátuo balançando em mãos, reunindo-se e
aglomerando-se, formando um círculo imperfeito de cores fracas. Aquele era o
conto de Terezza Vinland e Randal Braveheart, mas mostrado de um ângulo
diferente. Reconheci bruxas nuas, saltando como lobos e macacos, com garras
protuberantes e olhares sangrentos contra o meio de todo o ritual, mas a
derrota de todas elas era inevitável: havia um Randal infalível no meio de
tudo, ceifando cabeças e arrancando membros.
Estava tudo correto, com
exceção que o responsável pela matança não era o mesmo Randal que se propunha a
descrição dos antigos contos e sim alguém mais velho, de barba longa e um olhar
que saltava rubro das sombras, oculto ora sim, ora não por um manto vermelho e
rasgado. O estranho erguia a espada larga e ceifava vidas num simples movimento
de pulso.
Quem era aquele que Terezza beijou ao final do homicídio de suas
irmãs?
|
O estranho no vislumbre |
Não foi uma resposta que
consegui naquele vislumbre.
- O que isso significa? –
perguntei, mas a sonolência ainda estava impregnada em mim.
- Não significou nada para
você, oitavo? – era Kairos, mas austero que nunca.
- Eu... eu não sei... eu
acho... – era difícil falar ou pensar.
- Dizem que os videntes são
melhores assim que acordam, então, é hora de dormir, criança – ele riu feito
uma hiena novamente – bons sonhos, mago.
Eu não queria dormir, mas eu não
era o dono da minha vontade naquele momento. Não desejava outro sonho como o
último e, por isso, tentei resistir ao máximo o peso de minhas pálpebras em vão.
Dormi. Dormi, mas não sonhei. Era outro dia nas profundezas da Floresta dos Mil
Sussurros e os anciões tentavam farejar nossa presença...
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