Revelações do demente


[Este conto é continuação de O coração pulsante 📖]

O arco de sangue-manchado havia se dobrado, parecia retorcer-se de dor. A flecha fantasma tornara-se névoa e a morte de Alexia havia sido adiada naquele instante. As folhas secas, que até aquele momento rodopiavam inofensivamente, formaram um redemoinho violento que arrastou a portadora da lâmina das bruxas para longe do combate.

- É ele! – exclamou Koku enquanto protegia sua arma seja lá do que fosse.

A figura que todos pudemos ver naquele momento era Kairos, aquele o qual Alexia havia nos direcionado a encontrar. Kairos, o demente, como o povo das cidades civilizadas o chamava, era uma caótica formação de pele humana e casca de madeira com cabelos avolumados como uma espessa copa de árvore, alto, desengonçado como uma oiticica. Foi aquele ser que comandou a natureza para impedir o final repentino de Alexia. Havia muitas mais histórias sobre o druida insano que se pode contar numa vida, em sua maioria histórias bizarras que ora fazem dele um herói, ora um vilão sem decência. Eu esperei, naquele instante, que ele decidisse ser o herói.

Os fantasmas da floresta dispararam contra o druida enquanto Alexia erguia-se e tomava a lâmina das bruxas em mãos. Ela sabia exatamente qual seria seu próximo passo, eu deduzi isso quando a vi correr para a barreira intransponível de natureza ao redor de Kairos, protegida pelas feras feitas de galhos e folhas que agora se desenraizavam do solo ameaçando os fantasmas e meus próprios aliados.

Ulric e Lady Helena ocuparam-se com as invocações de Kairos. Lady Helena empunhava sua lança e salvava a vida de um fantasma desocupando-se da missão de me guardar. Eu observava Alexia ficar distante e senti todo o feitiço dela atuando em mim. No sonho que havia tido aquela noite, uma estranha figura havia me alertado sobre o encantamento que Alexia havia me jogado para que eu me tornasse empático a ela e sei que vocês, meus caros leitores, vão julgar minha próxima decisão como burrice, mas, não e fácil se livrar de um feitiço, especialmente quando todas as peças se encaixam e o indivíduo sabe que ele é alguém importante na jornada. Quero dizer, a que ponto isso iria chegar? Em quê mais eu seria útil? Qual seria a minha tarefa? Esses questionamentos me afetaram tanto a cabeça que eu ignorei o fato de estar separando-me de amigos e dos braços de guerreiros que me protegeriam muito mais do que uma bruxa suicida e um druida demente.

Corri ao encontro de Kairos, porque era para lá que Alexia estava seguindo.
Ainda nua, Alexia corria para livrar-se dos fantasmas da floresta que agora haviam decidido disparar somente contra ela. Kairos pareceu aprovar minha decisão de segui-la e em meio ao tumulto de ventos, folhas e areia pude ouvir ele falar:

- Quem resistiria a um corpo jovem esbelto de uma garotinha de cento e oitenta e dois anos! – eu não pude ver seu rosto, ele estava oculto por uma estranha máscara de madeira, notei apenas que um de seus olhos era denso e amarelo, sabia o que aquilo significava. Tenho certeza que ele esboçava um sorriso zombeteiro por trás de tudo.

- Cento e oitenta e oito! – eu corrigi e ele se surpreendeu olhando uma segunda vez para o corpo desnudo da bruxa e emitindo um som que parecia um lobo uivando para lua.

A árvore mais larga no meio do caminho abriu-se como uma enorme... vagina derramando licor transparente e gotejante. Foi lá onde Alexia entrou e foi lá para onde a segui. Aquele foi o meu primeiro transporte entre árvores da vida – quando fiz esse comentário para Kairos, ele riu desengonçadamente enquanto me questionava: “então, esta foi sua primeira vez!?” – ele foi o responsável por nos distanciar do embate. Saímos do “mundo das árvores” imundos e cobertos de limo, vomitando a seiva das plantas, como bebês que acabavam de sair das barrigas de suas mães.

Alexia ainda tentou se sustentar em pé, apoiando-se na lâmina das bruxas, mas, finalmente ela desabou enjoada e exausta, caindo imediatamente num sono profundo. Enquanto me livrava dos vestígios das árvores deduzi que a lâmina das bruxas havia devorado uma parte de sua vitalidade – havia marcas de garras nas costas de Alexia, além de hematomas que só se tornavam visíveis devido ao seu corpo nu.

Olhei ao meu redor e deduzi que estávamos nos confins da Floresta dos Mil Sussurros, em um lugar desorganizado e mal cheiroso que Kairos batizou de abrigo temporário. A própria natureza do local era caótica, com árvores que se contorceram e uniram-se umas às outras na intenção de formar uma cabana para o druida insano.

Kairos, o demente

Com uma cuspidela, Kairos ateou uma agradável fogueira no centro de seu abrigo, ergueu uma pedra conflituosamente confortável para sentar-se e apreciar as chamas agirem como tentáculos agarrando mosquitos. Eu retirei uma lona de couro de meus equipamentos – que felizmente haviam se livrado do aguaceiro da viagem pelas árvores – e cobri o corpo desprotegido de Alexia. Olhei para Kairos e ele me disparou um olhar reprovador. Voltei meus olhos para a bruxa e para sua lâmina – eu não possuía naquele momento, nenhuma vontade de empunhá-la – meus pensamentos se voltaram para as cenas da última luta e estes só foram encerrados quando ouvi o demente comentar:

- Qualquer um ficaria com medo, tendo ancas tão pequenas, não acha? – Kairos pousava o queixo na própria mão enquanto observava meu cavalheirismo, seus olhos eram de cupido.

- Como? – dúvida seria a reação de qualquer ser ao escutar o comentário de Kairos.

- Quero dizer, olha para as ancas dela – Kairos gesticula muito enquanto se comunica e muitas vezes seus gestos não acompanham a ideia geral do assunto – com um ventre tão pequeno quanto esse, não me admiro que ela seja uma amedrontada. Qualquer bebê que saísse daí, provavelmente a partiria em dois. Especialmente uma criança que nascerá com o peso de todo o ego da humanidade!

- Do que você está falando?

- Do medo da sua namorada, idiota! – minha cabeça agora se confunde e eu não sei se o que estava sentindo naquele momento, por Alexia, era o feitiço ou uma paixão sem nome. Não podia ser qualquer um dos dois.

- Porque você acha que ela tem medo?

- Quem mais agiria feito um tolo contra os fantasmas da floresta, que não seja um suicida? Ela só pode estar querendo morrer, é claro – ele deduziu, mas aquilo não era somente uma suposição, estava claro que Kairos sabia de muito mais. Como vocês lembram, em meu sonho, Terezza, a mãe de Alexia, apareceu-me como um... ser bizarro e gigantesco, alertando-me que sua filha desejava a morte, mas, até aquele momento, eu não havia tido tempo para pensar em qualquer coisa.

- Porque você nos ajudou!? – minha voz saía sem controle da boca. Eu nunca fui tão impulsivo como fui naquele momento.

- “Nos ajudou?”. Você quis dizer: “ajudou ela” – corrigiu o druida – E fique calmo, criancinha, não gosto da forma que seus olhos estão ameaçadoramente arregalados agora...

Eu me surpreendi com minha atitude. Sei que minhas palavras não soaram ofensivas, mas meu tom de voz exigia uma discussão amarga e sem sentido com alguém que carrega a alcunha de demente. A razão ponderou minha reação e resolvi começar do zero:

- Eu sou Octavus Theomund, mago da Távola de Azran e sei quem você é. Você é Kairos, o demente!

- De que adianta tantos nomes e apelidos? – o druida respondeu quase alheio à minha apresentação.

- Preciso saber por que você se arriscou tanto para salvá-la – tentei ser o mais cordial possível.

- “Arriscou?” – comentou ele, entre assobios e risos de hiena - eu só desejo dar o que ela quer, mas da forma certa.

- Você a salvou para ter o direito de matar ela? – presumi a resposta mais insana.

- Não vou matar ela, só vou enviá-la à morte certa – para Kairos aquilo parecia fazer todo sentido – senta aqui, meu querido hóspede, assista a madeira crepitando junto a mim. Ela te revelará coisas preciosas demais para a sua doentia e falsa curiosidade.

Foi o que fiz. Sentei-me no chão, em frente à fogueira e à pedra-trono de Kairos. Demorou mais de um minuto para que as chamas pudessem fazer algum sentido, até lá, contei vinte e um mosquitos mortos.

O que vi naquelas chamas era uma história conhecida, mas adornada por uma realidade mais escura e macabra que a primeira vez que a ouvi. O calor abrasivo da fogueira, a fumaça que eu inevitavelmente inalava e o torpor de um sono irresistível, turvaram a minha mente e eu deduzi que estava em meio a uma magia xamânica conjurada por um louco de riso zombeteiro oculto por uma máscara de madeira.

Os tentáculos ígneos deram forma a inúmeras figuras distantes que fediam a cinzas de fogueira. Era uma convenção de bruxas, a convenção do fogo bruxuleante. As bruxas caminhavam em fila, com suas lanternas de fogo-fátuo balançando em mãos, reunindo-se e aglomerando-se, formando um círculo imperfeito de cores fracas. Aquele era o conto de Terezza Vinland e Randal Braveheart, mas mostrado de um ângulo diferente. Reconheci bruxas nuas, saltando como lobos e macacos, com garras protuberantes e olhares sangrentos contra o meio de todo o ritual, mas a derrota de todas elas era inevitável: havia um Randal infalível no meio de tudo, ceifando cabeças e arrancando membros.

Estava tudo correto, com exceção que o responsável pela matança não era o mesmo Randal que se propunha a descrição dos antigos contos e sim alguém mais velho, de barba longa e um olhar que saltava rubro das sombras, oculto ora sim, ora não por um manto vermelho e rasgado. O estranho erguia a espada larga e ceifava vidas num simples movimento de pulso. 
Quem era aquele que Terezza beijou ao final do homicídio de suas irmãs?

O estranho no vislumbre

Não foi uma resposta que consegui naquele vislumbre.

- O que isso significa? – perguntei, mas a sonolência ainda estava impregnada em mim.

- Não significou nada para você, oitavo? – era Kairos, mas austero que nunca.

- Eu... eu não sei... eu acho... – era difícil falar ou pensar.

- Dizem que os videntes são melhores assim que acordam, então, é hora de dormir, criança – ele riu feito uma hiena novamente – bons sonhos, mago.

Eu não queria dormir, mas eu não era o dono da minha vontade naquele momento. Não desejava outro sonho como o último e, por isso, tentei resistir ao máximo o peso de minhas pálpebras em vão. Dormi. Dormi, mas não sonhei. Era outro dia nas profundezas da Floresta dos Mil Sussurros e os anciões tentavam farejar nossa presença...

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