Lady Helena varria as pernas dos
inimigos manejando habilmente sua lança de mithril, e eles tombavam, um a um,
para serem golpeados pelos martelos de Ulric, logo em seguida. O arsenal do
anão não havia entrado no combate para matar, caso contrário descreveria essa
cena de outra forma – miolos explodindo e olhos saltando para fora do crânio –
ao invés disso, Ulric golpeava joelhos e ombros, fraturando o osso do inimigo,
mas nunca o aleijando fatalmente. Eu tentava fazer algo similar, dopando os
fantasmas da floresta com meus feitiços.
Alexia, entretanto, não parecia
arrependida de ter começado aquela luta. A lâmina das bruxas é uma arma
destruidora, apesar da bruxa não saber manejá-la tão habilmente. As chamas
azuladas às vezes pareciam espectros feitos de calor e entravam pela boca da
vítima, incinerando seu estômago e vísceras, antes que as chamam rompessem seus
olhos numa explosão agonizante. Feridas que nunca iriam se cicatrizar.
- Pare com isso, Alexia! – gritei
ignorado.
Koku assobiou e todos os
fantasmas recuaram subindo em árvores altas e difíceis de escalar - para eles,
entretanto, era tão natural quanto um esquilo ou um macaco fazendo o mesmo
serviço. Eles se armaram com arcos e o barulho das flechas sendo arrancadas de
suas aljavas foi uníssono. Alexia havia matado três e outros seis estavam
estirados no chão, queixando-se da dor de uma fratura ou inconscientes devido
aos meus feitiços, no entanto, ainda havia pelo menos uma dúzia de arqueiros
ameaçadores e inalcançáveis.
- Encerrem seus ataques guardiões
da floresta! – exigiu Lady Helena tão espirituosa que era impossível não parar
e escutá-la – sou Helena, amazona eólica e membro da Távola de Azran! Com
exceção dessa bruxa, nenhum de nós deseja matar qualquer um de seus fantasmas!
Koku impediu que seus comparsas
disparassem com um breve aceno de mão.
- Conheço seu nome e sua
aparência, Lady Helena. A conheci ainda jovem e já ouvi canções sobre seu
heroísmo, mas receio que meus olhos estejam equivocados, pois a vejo ao lado de
uma bruxa portadora da magia mais vil que eu já presenciei, então, não nos
restam escolhas a não ser a de eliminar todos vocês.
- A vagabunda matou os seus por
desrespeito egoísta! – gritou Ulric – eu havia desconfiado de suas intenções
desde o início.
Meu caro leitor, eu costumo ser
porta-voz em um discurso como aquele, mas naquele momento não me saía palavras
pela boca, não conseguia pensar em nada, entretanto, não estava com medo –
estranhamente eu não estava com medo.
- Eu libero a alma daqueles que
matei da maldição da lâmina – falou Alexia enquanto sua espada ainda flamejava
azul e cuspia essências fantasmagóricas.
- Você acha que sua piedade trará
algum retorno? – Koku indagou.
Eu sabia que os fantasmas da
Floresta dos Mil Sussurros não temiam a morte, isso porque ela não existia ali.
As almas abandonavam os corpos e vagavam até o centro da imensa floresta, lugar
que os habitantes de lá chamavam de coração pulsante, e este lugar mantinha
exatamente o que seu nome o precedia: um coração, tão grande quanto um ogro,
pulsando forte e provocando ondas de som semelhantes a sussurros, se escutadas
ao longe. Os fantasmas eram capazes de ouvir e entender essa sonoridade e
acreditavam ser um deus ou a voz uníssona de todos os anciões da floresta, por
isso obedeciam.
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O coração pulsante |
Porquê conhecia tudo isso, me
forcei a acreditar numa benevolência advinda de Alexia, quando, na verdade,
tudo que ela havia feito não parecia ter perdão.
- Eu não estou atrás de sua
piedade ou a de seus comparsas, prole da licantropia – Alexia pareceu ter se
aborrecido com a indagação de Koku - Eu apenas desejo acabar logo com isso e
poupar a vida de alguns, eliminando somente aquele que os lidera – apontou a
lâmina das bruxas para o símio. Ele ria e armava-se com seu arco longo
emoldurado com penas de aves exóticas.
Os fantasmas baixaram seus arcos
e Lady Helena interponha-se entre mim e o combate que estava prestes a começar,
como se desconfiasse que seriam as minhas atitudes que arruinariam tudo – sábia
líder dos cavaleiros eólicos, sempre correta.
O arco nas mãos de Koku era
famoso. Apenas Ulric, o senhor anão que desprezava qualquer história dos
humanos, surpreendera-se quando, depois do sussurrar de algumas palavras
advindas da boca do símio, o arco tremulante respondeu com voz forte e
decidida: “Morte aos nossos inimigos”. Sangue-manchado era o nome do arco de
Koku, batizado por uma das almas do coração pulsante, forjado para eliminar os
inimigos da floresta. Ao jurar vingança contra Alexia, o arco longo a
transformou em um inimigo potencial e os disparos afiados passaram a ter um
propósito sagrado.
O fogo azulado emanou furioso da
lâmina das bruxas e suas chamas espalharam-se inofensivamente pelo corpo de
Alexia. As vestes de senhora da Torre de Necromancia viraram pó e sua nudez
pálida e luxuriosa foi vestida pela silhueta esfumaçada do fogo bruxuleante. Eu
pude ver a estranha figura fantasmagórica envolvê-la como um manto invisível.
Os arcanos de Mordae chamam aquilo de eidolon, uma palavra de origem élfica –
tanto linguística quanto religiosa – eu chamo a presença de caçadora invisível
para evitar maiores explicações. A presença fantasmagórica, feita do fogo e do
ar envolta da bruxa, tinha lâminas em ambas as mãos e, além de seus membros
superiores e o vasto tecido fantasmagórico que se expandia como um manto pelas
costas de Alexia, são as únicas partes que posso me atrever a descrever formas.
Koku soprou um punhado de folhas
do galho em que ele se equilibrava tão naturalmente e elas foram guiadas pelo
vento, rodopiando primeiro inofensivamente até tornar-se um redemoinho de
folhas e terra. A visibilidade de seu inimigo estava prejudicada, então ele
saltou entre os galhos buscando distância e camuflagem contra a percepção de
Alexia. Galhos tornaram-se trêmulos e raízes desenterraram-se do chão,
serpenteando ao encontro das pernas da bruxa, mas a presença invisível a sua
volta ceifou a natureza como uma foice corta o trigo.
A lâmina das bruxas rasgou o ar e
o vórtice invisível arrancou uma árvore num corte tão perfeito que meus olhos
me atrasaram a noticiar a queda da madeira. Lembro-me de Ulric xingando Alexia
com mais um sinônimo de prostituta e Lady Helena observando apreensiva as flechas
fantasmagóricas disparadas pelo arco do sangue-manchado. As flechas sussurravam
maldições de morte e o forte vento parecia não as afetar. No final do trajeto,
elas se dissolviam formando uma névoa volátil. Os disparos, entretanto, não
tinham o objetivo de atingir Alexia, supus que o símio não queria matar a bruxa
– supus errado.
As flechas fantasmas cortavam o
ar ao redor de Alexia, ferindo o poderoso eidolon - ou melhor, rasgando o
tecido invisível e tornando-o um retalho de si mesmo. Entregue à fúria
sobrenatural, Alexia dizimou a natureza que Koku se apoiava a ponto de sobrar
somente uma árvore dentro dos limites da luta. Foi dali que o símio disparou
sua última flecha fantasma. O eidolon foi derrotado e, diante sua fronte, caiu
uma Alexia exausta empunhando uma lâmina que repentinamente encerrou a emanação
de calor azulado e deu liberdade à fumaça cinzenta que pouco servia para cobrir
a nudez de sua portadora.
O símio posicionou-se diante
Alexia e retesou a corda do arco de sangue-manchado.
- O seu erro, bruxa – uma flecha
fantasma apareceu no arco de Koku, ela sussurrou algo irreconhecível – é ter me
enfrentado no lar dos anciões. A sua alma e a alma de qualquer um, deve
submissão a eles – um suspiro antes de disparar e ele ofereceu sua vitória ao
coração pulsante.
Disparou bem na cabeça dela.
É claro, a vida de Alexia não
estava pronta para ser interrompida ali. De fato, ela iria morrer naquele
momento caso a estranha e caótica natureza não houvesse desobedecido os anciões
naquele momento. Confesso que eu tentei fazer alguma coisa para salvar a bruxa,
mas Lady Helena me proibiu. Não fui eu o salvador de Alexia... o salvador não
estava do nosso lado, somente não apreciava as leis dos anciões – e se sentiu
satisfeito simplesmente por quebrar uma regra.
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