Cassandra Lienbold




Quem hoje me vê aqui de pé, cabeça erguida e dividindo o mesmo espaço daqueles que tanto desprezo jamais iria imaginar como foi a minha caminhada até o presente momento... Todos tem um começo, quem dera eu lembrar, talvez assim eu pudesse por a culpar dessa vida de merda que tive em alguém.... Já ouvi em algum lugar que pessoas que tiveram traumas na infância não se lembrar com exatidão o que ocorreu em sua vida, as poucas memorias que me vem à cabeça, se fosse por escolha minha eu jamais as teria, dias jogada na sarjeta, com fome, frio, suja, com dor e doente, todos aquelas inúmeras pessoas bem vestidas passavam por frente a mim, mas reviravam a cara, alguns ainda chutavam ou gritavam comigo, eu só queria comida ou algo que pudesse me aquecer, mas quem iria ligar para uma criança, dentre tantas naquela cidade??

Algumas vezes fico me perguntando o que eu fiz para o mundo, ou para aqueles malditos que deviam ter cuidado de mim... O mais engraçado é mal conseguir lembrar de mais rostos, muito menos ter ideia de que idade eu tinha naquele tempo, sei que eu era muito baixa e que ainda era menina... Raro as vezes que eu encontrava um como eu, mas adulto, que divida o pouco dele comigo, mas ao menos ele entendia a dor que eu passará naquele instante, era o mais próximo de um amigo que eu pude ter, só queria poder me lembrar de um nome, pra poder dizer ou agradecer aos malditos deuses, por aquele ser que teve a humanidade de me tratar como uma humana.

O pouco que lembro é de um senhor, barba e cabelos longos, pelo menos onde ainda tinha cabelo, ele me fazia feliz, me dizia coisas engraçadas e quando eu tinha fome tentava arrumar algo para mim, quando não, conseguia ele me fazer dormir, por mais que eu não quisesse ele sempre dizia que ao acordar seria um novo dia e que aquele dia poderia ser diferente.... Pobre senhor, quem me dera saber seu nome, assim eu poderia chorar e soluçar de saudades ao menos por saber quem de fato você era.... Pouco após eu perde-lo eu me vi só, mais uma vez, vaguei sem rumo por dias carregando comigo um velho cachecol que um dia foi amarelo, hoje ele me parecia marrom, cor da terra molhada das ruelas por onde eu passava, uma das pouquíssimas lembranças que tenho dele, e ali naquelas ruas sem me sustentar de cansaço e fome, eu caí, simplesmente despenquei, num baque surdo e forte, pensado que era a minha hora, mas eu agradeci pois finalmente poderia morrer em paz....

Acordei com um cheiro, era algo que eu nunca havia sentido, uma mistura de ervas e um cheiro agradável que me dava muita fome, quando consegui abri os olhos eu estava deitada em uma cama frente a uma senhora, esta que me olhou com um sorriso estampado na cara, ela tinha olhos lindos, quase como os dos anjos desenhados em pedra nas igrejas, me ergueu um prato com uma espécie de água colorido cheia de coisa boiando, era sopa algo que eu a muito tempo não via, mas era algo bom e não o que eu encontrava jogado por ai. 

Ela sentou-se ao meu lado e me alimentou, eu só conseguia chorar, mal segurava a sopa em minha boca.... Algum tempo se passou, já havia crescido, não era mais tão menina, vivia junto da senhora Heleonor uma excêntrica dona de bordel que por pura boa vontade, ou não, pegava meninas nas ruas e as acolhia em sua estalagem, dando a elas comida, um lugar quente para dormir à noite e trabalho, também haviam aqueles que queria receber um pouco mais e em troca disso faziam “favores” para pessoas, eu ingenuamente não entendia na época, mas era algo que Dona Heleonor jamais pediu a nenhuma de suas “Filhas”.... A senhora me acolherá naquele lugar com o intuito de me cuidar e de me dar uma chance de viva, mas as mulheres mais velhas me contaram certo dia, que eu era muito parecida com Madelyne a filha desaparecida dela, foi então que pensei que todo o cuidado que ela tinha comigo era mais para poder conseguir viver com aquele sentimento de perda, eu me senti traída, mas eu era ingênua e egoísta... E foi ali que eu me enganei profundamente.... Após uma noite de shows no bordel fui limpar um dos quartos que havia vago a pouco, este era o meu serviço e forma de pagamento por tudo que ela me fez, apesar de ter me distanciado devido a descoberta do porquê está vivendo ali. Entrei e comecei meu serviço, era tarde da noite, muitos bêbados estavam sendo jogados para fora pela própria Heleonor, quando eu senti algo tocar em mim, antes mesmo que eu pudesse gritar ele já havia me agarrado e me levado para cama, tampou minha boca com sua mãozorra, era um meio-orc completamente bêbado, eu me debati, mas de nada adiantou, ele era grande e muito forte, com um puxão ele rasgou minha roupa, mas eu nada podia fazer naquele momento.... Tentei o máximo que pude, mas ela já estava em cima de mim.... eu chorava, ele estava me machucando, eu me senti completamente presa, mais do que em qualquer instante na minha vida.... Mesmo lutando contra ele e vendo que aquilo era em vão, procurei algo que pudesse me ajudar, vi que nas calças abertas dele pendurada no seu cinto a balançar, estava um punhal, não pensei duas vezes e me estiquei o máximo que pude para alcançá-la, fazendo com que ela escorregasse nos meus dedos quase caindo da minhas mãos, consegui segurar no último instante e como ultima forma de me defender esfaqueei-o no braço, ele urrou de dor e saiu de cima de mim, foi o tempo que precisei pra gritar por socorro, aos prantos me encolhi em cima da cama e tentei me proteger.... Ele avançou em cima de mim com tudo o que tinha, agarrou-me com o seu braço machucado e começou a me socar com o outro.... Ali eu já não ouvia e mal conseguia ver o que estava acontecendo.... 

A única coisa que vi foi o meio-orc caindo e Heleonor com o punhal ensanguentado na mão… E foi que entendi que ela me amava, por mim, e não por me parecer com a filha desaparecida dela.... Logo toda a cidade ficou sabendo do ocorrido, Heleonor tomou toda a culpa para si, me deixando de fora do ocorrido, eu naquele instante já estava longe, junto de algumas outras “filhas” dela indo em direção capital.... Messes depois ficamos sabendo que ela foi encontrada morta dentro de sua cela, e não havia sequer pistas de quem ou o que a matou.... Na capital eu cresci com a ajuda das outras, elas voltaram a vidinha de antes, já eu procurei trabalho da melhor forma possível, eu não podia aceitar a morte dela, toda a minha economia fora voltada a estudo e pratica para que eu pudesse voltar e encontrar algo relacionado a “minha mãe”.... Eu me preparei por anos, até que resolvi voltar. Procurei tudo o que pude, subornei guardas, invadi locais, fiz de tudo para encontrar algo, mas a única coisa que consegui encontrar foi um anel e nele havia escrito “Tua filha viverás, mas sua morte será certa”... Um sinete, algo que parecia ligado a um culto...Não, algo ligado a uma grande família que reside na capital.... E foi aí que eu decidi invadir por contra própria e fazer justiça com minhas próprias mãos…. Aceitando o nome que me foi dado por ela...

Assinado,
Cassandra LIenbold.

Cassandra Lienbold, arte por Homero Ricardo

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