Quem hoje me vê aqui de pé, cabeça erguida e
dividindo o mesmo espaço daqueles que tanto desprezo jamais iria imaginar como
foi a minha caminhada até o presente momento... Todos tem um começo, quem dera
eu lembrar, talvez assim eu pudesse por a culpar dessa vida de merda que tive
em alguém.... Já ouvi em algum lugar que pessoas que tiveram traumas na
infância não se lembrar com exatidão o que ocorreu em sua vida, as poucas
memorias que me vem à cabeça, se fosse por escolha minha eu jamais as teria, dias
jogada na sarjeta, com fome, frio, suja, com dor e doente, todos aquelas
inúmeras pessoas bem vestidas passavam por frente a mim, mas reviravam a cara,
alguns ainda chutavam ou gritavam comigo, eu só queria comida ou algo que
pudesse me aquecer, mas quem iria ligar para uma criança, dentre tantas naquela
cidade??
Algumas vezes fico me perguntando o que eu
fiz para o mundo, ou para aqueles malditos que deviam ter cuidado de mim... O
mais engraçado é mal conseguir lembrar de mais rostos, muito menos ter ideia de
que idade eu tinha naquele tempo, sei que eu era muito baixa e que ainda era
menina... Raro as vezes que eu encontrava um como eu, mas adulto, que divida o
pouco dele comigo, mas ao menos ele entendia a dor que eu passará naquele
instante, era o mais próximo de um amigo que eu pude ter, só queria poder me
lembrar de um nome, pra poder dizer ou agradecer aos malditos deuses, por
aquele ser que teve a humanidade de me tratar como uma humana.
O pouco que lembro é de um senhor, barba e
cabelos longos, pelo menos onde ainda tinha cabelo, ele me fazia feliz, me
dizia coisas engraçadas e quando eu tinha fome tentava arrumar algo para mim,
quando não, conseguia ele me fazer dormir, por mais que eu não quisesse ele
sempre dizia que ao acordar seria um novo dia e que aquele dia poderia ser
diferente.... Pobre senhor, quem me dera saber seu nome, assim eu poderia
chorar e soluçar de saudades ao menos por saber quem de fato você era.... Pouco
após eu perde-lo eu me vi só, mais uma vez, vaguei sem rumo por dias carregando
comigo um velho cachecol que um dia foi amarelo, hoje ele me parecia marrom,
cor da terra molhada das ruelas por onde eu passava, uma das pouquíssimas
lembranças que tenho dele, e ali naquelas ruas sem me sustentar de cansaço e
fome, eu caí, simplesmente despenquei, num baque surdo e forte, pensado que era
a minha hora, mas eu agradeci pois finalmente poderia morrer em paz....
Acordei com um cheiro, era algo que eu nunca
havia sentido, uma mistura de ervas e um cheiro agradável que me dava muita fome,
quando consegui abri os olhos eu estava deitada em uma cama frente a uma
senhora, esta que me olhou com um sorriso estampado na cara, ela tinha olhos
lindos, quase como os dos anjos desenhados em pedra nas igrejas, me ergueu um
prato com uma espécie de água colorido cheia de coisa boiando, era sopa algo
que eu a muito tempo não via, mas era algo bom e não o que eu encontrava jogado
por ai.
Ela sentou-se ao meu lado e me alimentou, eu só conseguia chorar, mal
segurava a sopa em minha boca.... Algum tempo se passou, já havia crescido, não
era mais tão menina, vivia junto da senhora Heleonor uma excêntrica dona de
bordel que por pura boa vontade, ou não, pegava meninas nas ruas e as acolhia
em sua estalagem, dando a elas comida, um lugar quente para dormir à noite e
trabalho, também haviam aqueles que queria receber um pouco mais e em troca
disso faziam “favores” para pessoas, eu ingenuamente não entendia na época, mas
era algo que Dona Heleonor jamais pediu a nenhuma de suas “Filhas”.... A
senhora me acolherá naquele lugar com o intuito de me cuidar e de me dar uma
chance de viva, mas as mulheres mais velhas me contaram certo dia, que eu era
muito parecida com Madelyne a filha desaparecida dela, foi então que pensei que
todo o cuidado que ela tinha comigo era mais para poder conseguir viver com
aquele sentimento de perda, eu me senti traída, mas eu era ingênua e egoísta...
E foi ali que eu me enganei profundamente.... Após uma noite de shows no bordel
fui limpar um dos quartos que havia vago a pouco, este era o meu serviço e
forma de pagamento por tudo que ela me fez, apesar de ter me distanciado devido
a descoberta do porquê está vivendo ali. Entrei e comecei meu serviço, era
tarde da noite, muitos bêbados estavam sendo jogados para fora pela própria
Heleonor, quando eu senti algo tocar em mim, antes mesmo que eu pudesse gritar
ele já havia me agarrado e me levado para cama, tampou minha boca com sua
mãozorra, era um meio-orc completamente bêbado, eu me debati, mas de nada
adiantou, ele era grande e muito forte, com um puxão ele rasgou minha roupa,
mas eu nada podia fazer naquele momento.... Tentei o máximo que pude, mas ela
já estava em cima de mim.... eu chorava, ele estava me machucando, eu me senti
completamente presa, mais do que em qualquer instante na minha vida.... Mesmo
lutando contra ele e vendo que aquilo era em vão, procurei algo que pudesse me
ajudar, vi que nas calças abertas dele pendurada no seu cinto a balançar,
estava um punhal, não pensei duas vezes e me estiquei o máximo que pude para
alcançá-la, fazendo com que ela escorregasse nos meus dedos quase caindo da
minhas mãos, consegui segurar no último instante e como ultima forma de me
defender esfaqueei-o no braço, ele urrou de dor e saiu de cima de mim, foi o
tempo que precisei pra gritar por socorro, aos prantos me encolhi em cima da
cama e tentei me proteger.... Ele avançou em cima de mim com tudo o que tinha,
agarrou-me com o seu braço machucado e começou a me socar com o outro.... Ali
eu já não ouvia e mal conseguia ver o que estava acontecendo....
A única coisa
que vi foi o meio-orc caindo e Heleonor com o punhal ensanguentado na mão… E
foi que entendi que ela me amava, por mim, e não por me parecer com a filha
desaparecida dela.... Logo toda a cidade ficou sabendo do ocorrido, Heleonor
tomou toda a culpa para si, me deixando de fora do ocorrido, eu naquele
instante já estava longe, junto de algumas outras “filhas” dela indo em direção
capital.... Messes depois ficamos sabendo que ela foi encontrada morta dentro
de sua cela, e não havia sequer pistas de quem ou o que a matou.... Na capital
eu cresci com a ajuda das outras, elas voltaram a vidinha de antes, já eu
procurei trabalho da melhor forma possível, eu não podia aceitar a morte dela,
toda a minha economia fora voltada a estudo e pratica para que eu pudesse
voltar e encontrar algo relacionado a “minha mãe”.... Eu me preparei por anos,
até que resolvi voltar. Procurei tudo o que pude, subornei guardas, invadi
locais, fiz de tudo para encontrar algo, mas a única coisa que consegui
encontrar foi um anel e nele havia escrito “Tua filha viverás, mas sua morte
será certa”... Um sinete, algo que parecia ligado a um culto...Não, algo ligado
a uma grande família que reside na capital.... E foi aí que eu decidi invadir
por contra própria e fazer justiça com minhas próprias mãos…. Aceitando o nome
que me foi dado por ela...
Assinado,
Cassandra LIenbold.
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Cassandra Lienbold, arte por Homero Ricardo |
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