Além da névoa de meus sonhos,
agora havia a presença que esmagava meu peito e me deixava inquieto. Com o
tempo, videntes como eu desenvolvem um sexto sentido, algo que nos impede de
tomar atitudes mau elaboradas. Pois bem, eu havia ignorado essa minha percepção
quando decidi encontrar-me com o monstro preso naquele pesadelo, provavelmente
porque era um pesadelo e as chances de minha própria consciência me matar eram
bem reduzidas. Engano meu, óbvio.
A névoa tornou-se mais densa aos
meus pés, nem por isso a minha visibilidade estava perfeita. Ar quente
empurrava a névoa contra o solo e quase incandescia minha pele. Eu encarei a
morte subitamente quando decidi olhar para cima e ver Terezza.
Certamente não era apenas
Terezza, mas sim um emaranhado de rostos, braços e músculos untados a bizarra
forma de uma centopeia gigantesca de ossos afiados e carne pútrida. Tudo isso
agarrava uma Terezza nua, estampada no torso da criatura como um crucifixo no
peito de um guerreiro. Apesar de pálida e visivelmente doente, ela mantinha uma
beleza estranha capaz de despertar luxúria. Bruxas são antros do pecado,
talvez, naquele momento, meus olhos distorciam sua forma.
Era a respiração de mil almas que
empurrava a névoa contra o chão e que aquecia até meus ossos. Terezza abriu os
olhos.
- Theomund... – era um sussurro
que não vinha somente da bruxa, mas de todas as almas que descrevi antes.
- Sou eu... – respondi lutando
bravamente contra o medo e, naquele momento, percebi que não poderia
simplesmente acordar e me livrar do pesadelo.
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Terezza e a coisa |
Todas as pernas da coisa, afiadas
como foice, tocaram no chão emitindo um inusitado som metálico. Se a centopeia
demoníaca encostasse no solo enevoado, ela me esmagaria e me tornaria uma parte
da composição dela, mas, a intenção de ela curvar-se contra mim era manter seu
peito, onde Terezza estava, próximo de meus ouvidos.
Os braços que agarravam a bruxa
cederam um pouco, apenas o suficiente para que Terezza esticasse o próprio
pescoço e sussurrasse bem na minha orelha:
- Escute, oitavo – o hálito dela
também era quente – impeça Alexia.
Meus olhos arregalaram-se
repentinamente, envolvidos pela declaração surpreendente.
- Ela deseja morrer, mas não
pode. Ela é a portadora! – os sussurros eram salivantes. O líquido caía por
sobre meus ombros – você precisa detê-la! Ela precisa ser rainha!
Agora, enquanto escrevo essas
páginas, me lamento por não ter tido coragem de perguntar algo à coisa. Como
disse anteriormente, sonhos são premonitórios, mas, eles não revelam todas as
peças do quebra-cabeça, apenas aguça os sentidos do sonhador – ou o enlouquece
de paranoia – então, talvez minha mudez seja explicada por esse motivo.
Acordei naquele momento, suando
de delírio. Minha visão ainda estava turva quando notei dezenas de silhuetas ao
meu redor. Entre elas estava Alexia, Lady Helena e Ulric, as demais eram
fantasmas. Fantasmas da Floresta dos Mil Sussurros.
- Se a maioria de vocês tivesse
cara de estúpido, eu só os mandaria dar meia volta e sair da floresta, mas
vocês parecem saber demais – falou alguém que eu ainda não tinha a visibilidade
– com certeza estão tentando fazer treta com os anciões, portanto, sinto muito,
não posso permitir.
A visão finalmente tornou-se
menos embaçada e pude ver um macaco. Um homem macaco, pendurado nos galhos de
uma árvore demonstrando maestria nesse exercício. Ele não estava sozinho, é
claro: dezenas de vigilantes da floresta estavam com ele.
- Você é o líder do Monastério
Fantasma. Seu nome é Koku. – eu o reconheci. Não que eu já tivesse o visto
antes, mas porque sua fama o precedia.
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Assim que Koku foi considerado o líder da floresta fantasma, ele reuniu seus seguidores e criou um templo monástico nas montanhas que servem de fronteira entre a Floresta dos Mil Sussurros e Mordae. O Monastério Fantasma é o responsável por treinar os khali ou fantasmas da floresta e os djundinni ou monges silenciosos. Essas duas ordens continuam a proteger a Floresta dos Mil Sussurros e firmar o pacto com as entidades do primeiro milênio. Aos poucos, Koku importasse com as terras ao redor de sua floresta e muitos de seus seguidores são recrutados para missões afora; trecho extraído de: Os reis da era. |
Koku era o que muitos estudiosos
chamam de shifter, um metade metamorfo, alguém que nasceu com os aspectos
físicos de uma linhagem manchada pela maldição de Yunnah, a deusa da noite e
patrona de todos os licatropos. Ele, entretanto, eu bem sabia, não era devoto
dessa deusa e sim um importante personagem da Floresta dos Mil Sussurros,
responsável por ensinar artes de aperfeiçoamento no combate aos vigilantes do
lugar, considerados seus irmãos mesmo que esses não portem os mesmos aspectos
símios de Koku. Sua história está muito além do que eu posso me lembrar agora.
- Parece que os sussurros dessa
floresta estão alcançando ouvidos demais – ele riu e eu não pude entender se
havia sido por simpatia ou zombaria, de qualquer forma seu rosto voltou à
expressão de austeridade quando pronunciou o comando: prenda-os...
Os fantasmas – como eu já disse:
os vigilantes da Floresta dos Mil Sussurros possuíam essa alcunha, mas não
eram, de fato, seres etéreos – saltaram de suas árvores em acrobacias
deslumbrantes. Todos de meu grupo se reuniram em círculo – Lady Helena sequer
tinha vestido sua armadura, era manhã, bem cedo, e não havia restado tempo.
- Preso não! – ralhou Ulric –
Você vai perder metade de seus amiguinhos se quiser nos levar à força! – Lady
Helena pousou a mão sob o ombro de Ulric, um aviso para que ele mantivesse a
calma.
O rosnar de Ulric, porém, pareceu
pacificar as atitudes do homem macaco e ele estava prestes a deixar que nos
explicássemos, então, eu vi o fogo azulado romper-se de um corte da lâmina das
bruxas.
Um dos fantasmas gritou de forma
excruciante enquanto seu corpo era devorado por um fogo que não queria se
apagar. Todos assistiram aquilo. Quero dizer, não somente assistimos como
sentimos o cheiro da carne queimada, a agonia de uma morte inevitável e o
mal-estar o qual apenas indivíduos malignos parecem ser imunes. Bocas ficaram
abertas e o medo estampado nos rostos.
Ao terminar a demonstração da
lâmina das bruxas, Alexia deu um passo a frente e disse:
- Você não tem poder para exigir
isso – e havia frieza em sua voz.
No plano de fundo da bruxa haviam
três figuras estagnadas: eu, Ulric e Lady Helena, confusos com o que tinha
acabado de acontecer, absorvendo a situação.
Houve um silêncio após tudo isso
que só foi encerrado com o comando de Koku:
- Matem-nos!
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