Névoa densa cobria o cenário. Era
uma floresta de raízes rasas e copas baixas de folhas rastejantes, havia umidade
na terra e o silêncio impregnado em tudo. Eu sozinho no meio de tudo isso.
Estava claro que era um sonho ou, talvez, um pesadelo. Estava disposto a
descobrir, ergui-me e tentei encontrar, em vão, minha mochila de carga, então,
vaguei e me senti um espírito de meu próprio sonho.
Finalmente escutei algo além da
densa névoa. Era alguém resmungando ou amaldiçoando algo, acompanhado pelo
batuque do que poderiam ser baquetas de madeira. Eu vi o responsável por isso
algum tempo depois – não me recordo se foram segundos ou minutos, mas a
sensação era de horas, os sonhos funcionam assim, iludem o espaço e o tempo –
era uma mulher bizarra, alguém que Ulric chamaria de bruxa simplesmente por
existir. Ela estava de cócoras e seus longos e desgrenhados cabelos negros se
espalhavam pelas costas como uma furiosa cachoeira de escuridão.
Não consegui ver a sua fronte,
mas presumi, pelo ritmo frenético de seu corpo, que os instrumentos que ela
tinha em mãos era um pilão e uma cuia os quais ela esmagava algumas ervas e
preparava um unguento malcheiroso enquanto balbuciava palavras sem sentido. Havia
um cajado tortuoso enfiado no chão molhado próximo a ela, ele parecia ter sido
feito a partir de um galho sinuoso das árvores do lugar imaginário. Ela estava
tão concentrada que, aparentemente, não tinha percebido minha aproximação.
Era somente eu, ela, o chão
pantanoso, a névoa densa e um horizonte de árvores monstruosas que eu não
duvidei um só momento de que poderiam virar algum monstro.
- Com licença – confesso que foi
uma apresentação idiota, mas se houvesse alguma possibilidade de aquela criatura
manter-se amigável, melhor. Sou um vidente, especializei minha vida nisso e sei
que os sonhos, em sua maioria, são premonitórios. Eu poderia entender o que
aquilo tudo significava e não conseguiria informações da terra e das árvores,
então, não foi uma aproximação tola.
A bruxa rugosa virou o rosto em
minha direção e seus olhos eram amarelos e divididos entre os sentimentos de
medo e curiosidade.
- Quem é você? - eu tinha que começar o assunto com alguma
pergunta.
Ela ergueu-se, mas isso não
aumentou em muito seu tamanho. Tinha a coluna curvada e uma de suas mãos era
uma garra monstruosa dotada de afiadas unhas negras, o outro braço apoiava-se
no cajado tortuoso. Era uma mulher devorada pela magia negra – começando pelos
dentes que ela parecia não possuir – notava-se que era uma jovem quando começou
a lidar com bruxaria e começar a apodrecer.
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A bruxa no meio da névoa |
- Você é Theomund! – ela falou.
Sua voz é difícil de descrever, era um misto do acúmulo de saliva de um
indivíduo sem dentes e os fragmentos quebrados de alguém sem traqueia.
- Sou – não me lembro se minha
voz soou alta o suficiente ou se desmanchou num sussurro provocado pela
surpresa.
- ... e está com a pequena
Alexia! – ela concluiu e supus que eu era um intruso no sonho de outra pessoa –
você é o babaca enfeitiçado! – ela exclamou enquanto caía numa gargalhada
escandalosa.
- Você é Terezza Vinland? –
chutei e o nome provocou o silêncio e a inquietação nela.
- Eu não sou a coisa! Sou uma das
traídas – ela cuspiu saliva gosmenta no chão.
- Você fazia parte da Convenção
do Fogo Bruxuleante! – deduzi o óbvio.
- Silêncio! Não pronuncie este
nome aqui! – a bruxa advertiu enquanto olhava os arredores, em busca de
qualquer coisa além da névoa densa.
- O que estou fazendo aqui?
- Você é tolo. Um tolo
enfeitiçado pelos poderes da lâmina!
- Eu não desejo a lâmina das
bruxas. Ela pertence à Alexia – eu expliquei, ainda confuso.
- Não, não, não! Estúpido! Você
está enfeitiçado por quem porta a lâmina – a revelação me causou inquietude.
- Engana-se, estou aqui por
minhas próprias razões – revelei, crente que poderia culpar a minha curiosidade
pelo ocorrido de estar ali.
- Não, garoto. Você é muito
diferente de seu pai. Você quer ser um curioso, mas não é. Você teme o conhecimento
e a própria existência. Você está aqui pelos anseios de Alexia. É um apaixonado
e alienado.
- O conhecimento requer riscos.
Eu não escolheria o caminho da magia se não estivesse disposto a correr riscos –
a conversa havia me abalado. Confiava demais no poder da minha mente, um mago
experiente, como eu, dificilmente cairia nos feitiços de uma bruxa.
- Você se engana, Theomund. Você
está aqui por causa de Alexia. Porque você se arriscaria em uma missão que está
tão distante do que você quer? – estava ali para resgatar Rasak, o líder da
Ordem do Arco e um membro da Távola de Azran, da qual participava, mas nunca
havia visto o arqueiro antes, não podia considerá-lo um amigo. Sob essas
condições, eu fui incauto ao aceitar a missão. Tantos outros soldados e
aventureiros teriam maior significância nesta jornada. Castelo Cinzento, o
caçador recrutado pela própria rainha em missões antigas, teria motivos muito
maiores do que eu, no entanto, ele não estava no grupo.
- Porque estou tendo esse sonho? –
eu queria fugir do assunto.
- Porque a filha da coisa usou a
lâmina para te enfeitiçar e é um feitiço poderoso – ela gargalhou – isso deixou
você vinculado à ela de alguma forma, provavelmente porque você é a merda de um
vidente.
- Então, minha permanência aqui
não tem razão alguma? É aleatória?
- Não sei – ela riu, dessa vez
mais comportadamente – talvez a coisa esteja com fome, talvez queira te dar um
aviso.
- Porque você chama Terezza
Vinland de coisa?
- Porque ela é uma! Ela não é
mais Terezza, ela é a coisa! Qualquer coisa que vire aquilo só tem um nome:
coisa e coisa é o nome dela!
- Aonde encontra a coisa, então? –
a pergunta pareceu pasmar a bruxa.
- Você é mais que tolo, mago!
Você é um merecedor da maldição. Você quer ver a coisa aqui, no território dela!?
Ninguém pode ser tão burro! Mas eu direi a você e espero que lhe sobre pelo
menos um olho ou um metro de tripa para que eu possa devorar como premiação por
tê-lo guiado até a coisa... – assenti positivamente tentando tirar da minha
cabeça a cena da bruxa medindo cautelosamente um metro de minhas tripas,
enquanto eu ainda vivo.
A bruxa me revelou o caminho, mas
não me pergunte como eu pude entendê-lo. Tudo que me lembro do sonho é névoa e
caminhos perdidos, mas, de alguma forma, eu caminhei exatamente para o meu
destino e, devo admitir, me arrependi de ter encontrado a coisa, porém, isto é
assunto para um próximo pergaminho.
Ulric, Lady Helena e a infeliz Alexia
desejam tomar rumo em direção aos profundos mistérios da Floresta dos Mil
Sussuros e, quanto a mim: eu sei de muito mais coisa agora que ontem e isso vai
influenciar a nossa jornada.
[Continua em Os fantasmas da floresta 📖)
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