A Mortalha


A Mortalha



Clint logo percebeu porque aquele lugar escavado nas montanhas geladas era o
esconderijo perfeito para os cultistas que ele estava perseguindo a semanas. O forte
barulho da ventania que acercava aquela formação de rochas montanhesas encobria o som
do macabro cântico que aqueles religiosos cobertos de túnicas vermelhas e longas
entoavam.

O entoar de dezenas de sacerdotes preenchia o ambiente escuro e úmido com o eco
gutural de suas vozes tenoras. Clint perseguiu o som das preces pelos corredores negros
até se deparar com as primeiras luzes de tochas e velas. Ele se aproximou perigosamente
da beira de uma longa escadaria e viu, muitos metros abaixo, um túnel retilíneo por onde
marchavam lentamente mais de trinta cultistas e suas respectivas velas de chamas
lúgubres.

“A Mortalha” - Clint deixou-se sussurrar entredentes.

Como experiente rato de masmorra, Clint usou as sombras como escudo e observou os
integrantes do culto se ajoelharem enquanto as velas, formando um mar de chamas
ofuscantes, eram erguidas acima de suas cabeças, acompanhando o ritmo das últimas
estrofes do cântico.

- Meus caros irmãos!

Exclamou o sacerdote em cima do altar. Aquele era o responsável por liderar aquela
cerimônia e sua voz ecoando pelos corredores da masmorra foi o suficiente para calar a
todos.

- Como prometido, trago a vocês o último sacrifício de sangue exigido pelo deus-fera,
Yeenoghu!

As cabeças de cada cultista se ergueram e todos viram a lâmina curvada ser
desembainhada das vestes do líder. Uma lâmina tão sinuosa quanto uma serpente. O brilho
metálico da adaga amedrontou Clint em seu esconderijo.

O líder do culto aproximou-se do altar. O lugar do sacrifício era um arranjado monolito de
pedra escura, onde um tecido vermelho de seda debruçava-se sobre a forma nua de uma
mulher. Clint sabia que a vítima dormia alvo de feitiços do sono, sabia que podia acordá-la,
mas de que forma poderia fazer isso sem chamar a atenção de dezenas de assassinos?
Talvez, na hora certa da cerimônia, ele poderia arriscar um disparo com a sua besta e
atrapalhar a celebração e qualquer que fosse sua intenção…

Não o fez.

Ao invés disso, assistiu de olhos vidrados o sangue da vítima ensopar o tecido vermelho.

- Está feito, ó senhor das moscas! Lorde da carne pútrida! Yeenoghu! Apareça e nos
conceda poder para alimentar a Catedral de Sangue! Yeenoghu!

Os cultistas baixaram suas cabeças e entoaram um cântico à Yeenoghu, o deus-hiena. As
vozes se somaram ao eco da masmorra. Parecia que a própria escuridão clamava pela
entidade maligna.

Um sopro frio, vindo do nada, apagou cada vela portada pelos cultistas. Eles encerraram o
cântico. O vento sombrio também foi responsável por arrastar o tecido vermelho que cobria
a mulher sacrificada. Clint teve a impressão de ver garras invisíveis despindo a vítima de
seu manto de veludo.

A mulher mantinha a face limpa e o corpo brotando sangue grosso como vinho. Clint a
reconheceu.

“Magda” - ele sussurrou, apenas para si mesmo.

Ele arregalou os olhos e escancarou a boca ao se deparar com o terror. A podridão tocou a
pele da mulher, instantaneamente. Clint pôde sentir o cheiro. A vítima mexeu os lábios e
vomitou sangue aos borbotões. Ela se contorceu de agonia enquanto seus dedos
sangravam. Suas unhas caíam cedendo espaço para garras curvadas como foices. No
ápice do sofrimento da metamorfose, Clint deixou cair lágrimas involuntárias enquanto sua
mente lutava para manter a sanidade diante tanta agonia. O tormento, entretanto, terminou
e tudo que se pôde ouvir depois foi a respiração ofegante do sacrifício.

- Não cederei meus poderes a você, cultista. - afirmou a voz cavernosa e feral que
saía da garganta da mulher mutilada.

- Como? - indagou-se o líder dos cultistas - Mas… mas porque, meu senhor
Yeenoghu? O que fizemos de errado? Fizemos tudo como estava nas escrituras.

Os olhos da mulher se abriram revelando fúlgidas órbitas amarelas de demônio.

- Esta alma está incompleta. Ela não pertence somente a este corpo. Eu preciso da
outra metade!

A reunião de cultistas se entreolhou lamentosa. Depois de tanto trabalho...

- Como uma alma pode estar incompleta? Não entendo como isso é possível!

- Profano incompetente! Ela tem algo intragável em seu coração, mesmo depois de
morta! Não posso devorar uma alma incompleta!

- Diga-nos senhor, como poderemos encontrar a outra metade da alma do sacrifício? -
perguntou o líder dos cultistas quase implorando.

- Não se preocupe, profano. A alma está mais perto do que você imagina!

Os olhos da mulher viraram-se para a escuridão em que Clint se encontrava e um sorriso
amarelo, desdenhoso e pontiagudo se formou no rosto da criatura que era Yeenoghu.
Em seu esconderijo nas sombras, Clint não sentiu suas pernas funcionarem.

***

Em Draganoth há mal de sobra, mas nenhum é mais temido e discutido quanto o culto à
Saulot. Uma cabala de cultistas denominada “A Mortalha”, esconde-se nas profundezas do
mundo realizando seus atos malignos com a intenção de alimentar o deus lich e revelá-lo ao
mundo como um deus primordial.

A Mortalha realiza sacrifícios de sangue, compactua com demônios, tortura vítimas em
potencial para a criação da dor líquida e expande a maldição morta-viva pelo mundo. O
culto é profundamente bem organizado. Agir de forma oculta é a chave para seu sucesso.
Sacrifícios de sangue

Um sacrifício de sangue normalmente é exercido em um ou mais indivíduos de tendência
bondosa. Trata-se de um ritual macabro de matança realizado durante uma cerimônia
frequentada por dezenas de de cultistas da Mortalha. Os sacrifícios de sangue são feitos
para uma gama de serviços, dentre eles a capacidade de se comunicar com entidades
malignas de outros planos, a capacidade de desenvolver poderes sobrenaturais,
metamorfoses obscuras, rogar maldições, invocar portais e demônios.

“O sangue jorrava como riacho da garganta da vítima. Grosso, quente e lento, o fluido
escarlate escorregava até o recipiente disposto no chão, pelo líder do culto, antes do
assassinato. Quando já havia sangue o bastante, um dos cultistas conduziu o recipiente até
os demais. De mão em mão, o sorvedouro de vida foi passado até alcançar o toque do líder.

Ele invocou os poderes do profano, soou como uma maldição, e com um indicador provido
de uma longa garra negra, tocou o sangue do recipiente e o mexeu como uma pequena
colher numa xícara de chá:

- Revelem-me a localização, irmãos de outrora! Procurem o rastro de nosso inimigo!

Ajudem-nos a farejar a alma de Sir Allond e os presentearemos com mais sangue!
O sangue borbulhou e tornou-se mais grosso. Uma visão turva formou-se lentamente na
superfície. Ninguém mais poderia tirar respostas daquela nuance de magia negra, apenas o
líder daquele culto:

- O palácio da fendas! - sussurrou o líder - Nós marcharemos para o palácio das
fendas - gritou.

A Mortalha, mais uma vez, preparava-se para caminhar nas sombras do mundo
escondendo seus objetivos mais vis."

***

O Ninho da Mortalha

Encarceirados atrás da Muralha ao sul de Azran desde o fim Terceira Era, mortos-vivos e
seguidores de Saulot mantiveram-se inquietos em seus túmulos e mausoléus esperando
por uma nova chance de pisar no solo dos viventes. Foram os lordes vampíricos, senhores
da Cidadela de Sangue, os primeiros a reunirem as páginas do Necronomicon e
reconhecerem Saulot como o deus dos mortos-vivos.

Eles enfeitiçaram os mortais que, apaixonados pelo novo mundo que lhes seria
proporcionado, vestiram suas túnicas vermelhas e criaram o culto da Mortalha. Formou-se,
então, a disputa pelo poder da hierarquia dentro do culto. Os seguidores dos lordes
vampíricos aprenderam sobre a história de Saulot e começaram a venerá-lo, tornaram-se
fanáticos cada vez mais eficientes. Aqueles que obtinham mais sucesso para a Mortalha
eram abençoados pelo dom macabro da imortalidade ou tornavam-se seres privilegiados
dentre uma legião de necromantes.

Os melhores e mais influentes tomavam o título de Barão de Sangue e passavam a ter a
possibilidade de subir de hierarquia, alcançando patamares de poder e conhecimento
necromântico cada vez maiores.

A um Barão de Sangue é cedida uma Catedral e um Ninho da Mortalha. A Catedral trata-se
de uma sede onde o barão lidera seus súditos, realiza sacrifícios, esconde seus espólios e
administra as jornadas dos cultistas. O Ninho é um lugar dotado de presença necromântica
que serve de passo etéreo para os reinos além da Muralha. É através dos Ninhos da
Mortalha que os cultistas, as hordas trôpegas e as proles sombrias invadem os reinos
mortais e praguejam seus malefícios pelo mundo.

“Sejam bem-vindos, meus irmãos. Meus adorados profanos que a tanto devo a honra de
importante visita. Somos treze, em mais uma noite eterna, discutindo o próximo passo da
Mortalha. Tenho ordens importantes, cedidas a mim pelo próprio Exodus, desta vez minha
catedral erguerá-se na hierarquia, graças a vocês, fiel e esforçada fraternidade. Sirvam-se
com o sorvedouro da vida, espólio de minha última conquista na Ilha de Irminsul, enquanto
escutam a oratório de vosso anfitrião.

O nome Lionel, do sétimo arco, não lhes deve ser estranho. Ele é o arcanjo responsável
pelo fracasso da Catedral de Fizbul e pela derrota recente do deus-hiena, Yeenoghu,
assassino de três importantes devotos de minha nobreza, caçado freneticamente pela
Mortalha. Exodus concedeu a mim a ambiciosa missão de eliminá-lo, já fraco, sem uma das
asas, nos poços de Andaluz. Necessito de vossa ajuda para enfrentá-lo! Conservem-se,
irmãos, temos tarefas a realizar no caminho de nosso triunfo. Seis almas sem marcas.
Doces seis almas! Brindem!"  



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