Os Atemporais - Capítulo 07 - O perafita

Talvez terem me deixado para trás tenha sido uma ótima ideia. Não posso discordar, mas eles vão me agradecer quando a posteridade ler minhas preciosas anotações sobre o ocorrido nas ruínas dos gigantes de outrora. Eu não posso esperar vivenciar tudo antes de começar a escrever sobre nossos feitos, a vida de um verdadeiro literato não é assim. O êxtase e os detalhes do momento devem ser descritos no momento ou, se impossível, o mais rápido possível, enquanto o curso de ação ainda fervilha em nossa mente, entende? Avisei à você, meu caro leitor, que as palavras escritas no pergaminho anterior não seriam suficientes para descrever o acontecido e assim foi. Óbvio, não podia escrever enquanto nadava tão profundo no oceano, mas, como pode ter notado no último texto, eu morri e passaram-se dias até que eu acordasse novamente, já seco, são e salvo, no ambiente seguro que Ithias transformou em sua biblioteca particular nas ruínas.

Tenho por mim que esqueci muitos detalhes do ocorrido antes da minha morte. As memórias são assim, elas simplesmente fogem, especialmente quando a vida se encerra. Escrevi este pergaminho e o anterior já longe de meus colegas de jornada. Eles continuaram a perambular pela ruína sem mim. Estou me recuperando, renovando as bênçãos de Endimion e, principalmente, desentupindo os ouvidos da água. Me deixaram aqui com esse pequeno dragão fada que é capaz de ler meus pensamentos e isso é realmente odiável - estou falando do familiar mágico de Ithias. Ele a chama de Tuds. É uma dragonete, mas tem o tamanho de um dragão bebê, porque o velho mago a tornou assim.

Conto-lhe agora, neste pergaminho, o que aconteceu desde o último episódio. O casal Salvatore demorou, mas me encontrou flutuando quilômetros além mar, na escuridão completa. Devem ter passado horas me procurando, de modo que sorte foi a minha por existir esse casal de infiltradores sombrios para me encontrar onde ninguém mais me encontraria. Eles me tragaram para dentro de um buraco negro. Estava inconsciente, mas me explicaram.

Teomund escreveu outro "salto da jornada" na caverna que o grupo alcançou depois do lugar onde encontramos Leviathan. Discutiram algum tempo, mas, como sempre, a decisão final foi do descendente de Sigmund. Parte do grupo retornou com meu corpo inerte, saltando por essas fissuras mágicas e me deixando aqui para que Endimion pudesse me trazer de volta à vida. Eles virão me buscar quando for necessário. Temo que nunca.

Há até poucas horas estava realmente enraivecido com a situação - por eles me impedirem de vivenciar algo novo, continuando nossa jornada nas ruínas - mas, parece que descobri algo interessante por aqui.

Você deve se lembrar, meu caro leitor, que eu havia encontrado um artefato soterrado naquela caverna subaquática. Havia o descrito como uma máscara com uma pedra marinha incrustada. Os Salvatore encontraram aquilo enquanto me procuravam e resolveram trazer à tona para o restante do grupo. A coisa é um tanto estranha e mais parece um totem indígena pertencente à uma civilização muito antiga, de modo que me surpreendi quando notei a tal pedra marinha brilhar com luz tênue. O artefato se ergueu e se moveu entoando algumas palavras num idioma desconhecido - vale salientar aqui, meu caro leitor, que, como havia dito antes, um dos muitos dons que Endimion me concedeu é a capacidade de falar e entender qualquer idioma, mas parece que os estranhos grunhidos desta coisa são ininteligíveis, presumo, portanto, que ela fala um idioma tão mais antigo do que a existência do meu próprio deus. Interessante, não?

Encontrei o que fazer nesse meio tempo de completo abandono. Talvez você, meu caro leitor, reconheça essa tarefa de aprender um novo idioma como árdua e um tanto longa, mas, acredite, quando se conhece dois idiomas ou mais, há uma certa facilidade em aprender cada vez mais. A língua não tem muito segredo além da entonação, todas seguem um padrão e eu tenho um ser diante de mim que parece inteligente o suficiente para me ajudar.

Perafita

 

Estendi um dos vários exemplares da biblioteca de Ithias para a criatura e disse "li-vro", ela tateou o item, abriu, fechou, notou que havia um conteúdo escrito e me disse "kulok". Perfeito, essa foi a primeira palavra que aprendi na língua estranha.

Ficamos muito tempo à sós, de modo que aceleramos muito o processo de aprendizagem. Aos poucos notei que o ser era mais do que simplesmente inteligente, mas um guardião de memórias. Em meu último escrito falei o termo "elo perdido" e ele parece se encaixar bem para esta coisa. Descobri cedo que ele é um amante de gemas preciosas. Ele tentou me explicar porquê e retirou a pedra marinha incrustada na testa, depois a encaixou novamente. Parece que ele gosta de ter essas coisas perto dele.

***

Este é o nosso quarto dia e, como presumi, os atemporais não retornaram da aventura. Certo, quatro dias pode ser muito pouco diante a distância que presumo que eles precisam percorrer, então vou me conter em paciência. O vínculo que estou formando com a criatura que desenterrei na caverna subaquática cresce rapidamente. Descobri que há milhares deles nas ruínas. Sua raça se chama perafita e, como disse antes, são receptáculos de conhecimento. Averiguei de quê ele era feito, notei cobre, bronze, madeira e rocha, além da pedra marinha incrustada na face que brilha vagamente conforme ele pronuncia sílabas. Não encontrei escritos arcanos, mas consigo farejar magia nele. Pode ser má comparação, mas presumo que a ideia de criar essas criaturas não seja tão distante dos nossos forjados para batalha, da legião do Barão da Máscara de Ferro, em Dechaeon, mas a formulação é bem mais rústica. 

Muitos termos que o perafita usa são completamente desconhecidos para mim ainda. Acredito que tinha algum significado na época dele e se perdeu conforme o avanço das eras. Perguntei-lhe o nome, mas ele ficou em silêncio, portanto, presumo que ele ou não possui um, ou esqueceu-se completamente, o que não seria estranho depois de todos esses milênios.

***

Uma semana se passou. Os atemporais devem estar se divertindo muito ou, quem sabe, fracassaram e ficaram trancafiados de alguma forma.

Descobri o porquê de tanto apreço por gemas maravilhosas. Até a mais comum dentre elas pode despertar um poder ou habilidade quando incrustada na cabeça de um perafita. A pedra marinha que ele possui é um exemplar meramente decorativo. Contou-me sobre o ambicionado diamante branco, uma joia que, de acordo com ele, parece ser capaz de aprisionar um pouco da luminescência das estrelas. Parece-me algo distante de conquistar, mas isso deve atiçar a curiosidade de Teomund e Ithias.

***

Um dia para completar duas semanas. Acordo com a runa do "salto da jornada" flamejando e nem sabia que havia uma na biblioteca. O grupo retornou, eu e o perafita temos algumas novas para explicar, isso, claro, se os atemporais prometerem nunca mais me deixar de lado nas aventuras.Talvez essa chantagem funcione.

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