O DIA FINAL DE DUAS MÁCULAS


A história em que Fulgore nasce de novo e o pedido de um velho amigo

            A noite havia adquirido um aspecto sangrento, iluminado pelo horizonte onde as nuvens cinzentas dividiam a cor do céu com a magia da praga orc. Agora dois distritos orcs estavam sediando o terror. Enquanto o céu ainda estava claro, a Távola de Cadic, junto ao excêntrico Fulgore, o vermelho, uniram forças para derrotar Meredit, a bruxa orc responsável por alimentar a magia macabra que trouxe de volta o primeiro filho da rainha dos dragões negros.

            Agora, o Primeiro, era uma carcaça no chão e ainda sorvia o sangue ácido, derramado das feridas causadas pelas lâminas e flechas dos heróis. Foi próximo aos restos mortais do dragão negro que Fulgore dividiu com Karsize uma golada de sangue grosso e quente, vinda da presa e vomitada com muito gosto para acompanhar uma crise de risos incessante compartilhada entre os irmãos da mesma raça. O fato de o cadáver dracônico começar a exauri o cheiro da podridão não intimidava o grupo vitorioso àquela noite.

Dizia Fulgore, o vermelho:

            “Numa noite tão escura, fria e mórbida quanto essa, você me viu caindo no mar agitado e assistiu as águas me devorarem. Eu não o culpo por não fazer nada: morreria do mesmo jeito... e a morte não era algo que eu queria compartilhar com você naquele momento. Morte que te falo é a que deveria acontecer. Senti o frio e a escuridão me cercarem como uma fera que perscruta as profundezas daquele oceano traiçoeiro e quando dei por mim, voltei a enxergar!

            Era uma chama que me ardia os olhos e que sobrepujava o frio do abismo. Em instantes senti o meu coração bater novamente e o ar tornar a encher meus pulmões, com isso, recuperei as forças que precisava para alcançar a superfície. Eu continuava perdido no meio do nada, ao redor de mim, provavelmente quilômetros de oceano, mas sentia minhas forças completamente renovadas e nadei até alcançar essas terras. Azran, o reino acolhedor.

            Confesso que considerei (e ainda considero) burrice a atitude do rei das terras de cá: um tratado com os orcs! Isso não será o suficiente para curar o sentimento de vingança que a maioria dos nossos ainda alimenta no peito. Eu, entretanto, sinto o calor brando da chama que lhe falei, palpitando aqui. Sinto-me confortável nessas planícies eternas e, por isso, acho que este é o meu lugar. Agora encontro você, meu velho irmão de escravidão, com um belo par de presas saltando no meio da cara! A praga te alcançou, Karsize! Hahaha! Bênção ou maldição, sobrevivemos à ela!”

            E terminou o discurso com mais uma golada do sangue dracônico.

Na vez de Karsize, este explicou:

            “Sua história é digna dos tambores de guerra de nosso povo. Se os inimigos a ouvissem, temeriam. Disse-me uma chama e não há nada tão destruidor quanto o fogo. Minha história, entretanto, não se perde em minúcias, tanto quanto a sua, mas haverá um momento que julgarei certo compartilhá-la. O que devo fazer agora é convencê-lo de uma coisa...

            Guie meus amigos até Azkmodûr e seja um porta-voz da távola de Cadic perante os demais líderes. Estes não são meus inimigos agora, não pretendo que sejam inimigos algum dia, mas ninguém sabe o destino de cada um à longa data, apenas sei que amanhã eles merecem a tua ajuda, amigo.

            Eu, entretanto, não irei com vocês e antes que tentem me convencer do contrário, digo-lhes minhas motivações: meu nome não é pronunciado com o devido respeito por muitos de minha raça, há um prêmio por minha cabeça, acredito nisso, então seria perigosa minha presença diante os demais líderes das cidades-dûr. Ficarei aqui e aqui me unirei aos demais irmãos para proteger Feradûr enquanto seu verdadeiro líder estiver ausente.”

            Assim ficou combinado e quando o sol apareceu com sua coroa de fogo, Fulgore, o vermelho, guiou a távola de Cadic até Azkmodûr. O que aconteceu lá, vocês já conhecem, o que não sabem, entretanto, é o que se passava na mente de Karsize.

Pois que, algumas horas depois da ausência de Fulgore e a távola, Karsize pediu ajuda aos seus irmãos que ficaram e dotado de ideais convenientes à sua parte feral da raça, o meio-orc fez com que seus irmãos erguessem seus machados e marchassem em prol à sua pretensão.

            Aqueles que lutavam com o Segundo em Azkmodûr mal desconfiaram disto. Mesmo Adhraim, que havia presenciado a angústia transformada em rancor sangrento cuspido das presas de Karsize, achou que o meio-orc ia provar sua inocência da forma mais brutal que poderia ter escolhido: marchando em direção à ultima nuvem sangrenta ao sul e barrando as últimas forças dos líderes orcs.

 “Devemos estar preparados para dragões!”, ele gritou enquanto mantinha o curso até o ponto que iria encarar seu destino. “Temos de nos apressar!”, exclamou quando notou as comportadas pegadas élficas desenhadas no chão, pensando consigo mesmo que não deveria chegar lá depois da Inquisição.

***

Uma aliança inevitável e o que depois seria reconhecido como Behemoth

            O nome do último posto dos demonorcs foi perdido junto à pressa de chegar ao lugar. O que eles viram foi uma ponte de alvenaria secular interligando dois montes rochosos, entrecortados pela força insistente do rio das lágrimas e sua plantação de pedras afogadas. De um lado estava Karsize e uma dezena de orcs, do outro, os elfos da Inquisição.

“Vocês foram recrutados para serem os primeiros a cair perante a superioridade de minha raça?”

            Exclamou um Melanias afetado pelo hábito da guerra. O elfo era representante da Yeshua Laurë e seus olhos eram o espelho de um lago pacato e raso, porém, ali era uma onda furiosa prestes a abater os inimigos.

“Viemos aqui pelo mesmo motivo que sua raça!”

            Gritou Karsize.

“Os tempos mudaram e eu agora devo acreditar num heroísmo pós patriótico dos orcs ou a farsa de vocês será desmascarada nos próximos minutos?”


            A discussão foi repentinamente interrompida após o urro dracônico emitido entre os rochedos posteriores à ponte. “Dragão!”, orcs e elfos gritaram, mas de certo, aquilo não era um, porém, deveria ter sido: ao invés das escamas e do couro enrijecido, a criatura que se aproximou carregava em seu corpo as pústulas sangrentas e o odor acre do sangue apodrecido.

Criada e invocada para morrer, aquela criatura que batia as asas no céu era uma aberração tanto para os elfos quanto para os orcs e os paredões rochosos tornaram-se os escudos de guerra. Orcs subiram a encosta para saltarem corajosamente sobre a criatura, desferindo os mais brutos golpes de machado, raios e explosões foram conjurados pelos elfos e, mesmo não aceitando o auxílio um do outro, prezaram pela aliança pouco amistosa. De um lado, orcs aceitando virar poças de carne para protegerem indesejavelmente os elfos, do outro, a Inquisição abrindo passagens e concedendo chances de sobrevivência aos orcs com suas magias. Um raríssimo acontecimento que, de certo, nunca iria virar uma canção bárdica, se dependesse do orgulho de cada raça envolvida.

***

            Em meio aos desmoronamentos da encosta (provocados pela série destrutiva de rajadas e baforadas da luta que ocorria) Karsize trilhou caminho para o interior das rochas e vasculhou a escuridão cavernosa em busca de seu protegido. Encontrou-o nas profundezas de tudo, preso à amarras e correntes, ostentando manto e máscara de corvo, pois é assim que os médicos da praga se vestem.

O meio-orc quebrou os grilhões de Jackaby, ajudou-o a ficar de pé e o encaminhou para fora daquela prisão, para o meio da catástrofe que ocorria fora da proteção rochosa. Empurrou o médico para a luz, enfim, e admirou-se com a criatura que jazia feito um riacho de ácido e sangue bem próximo à entrada da caverna que entrara. “Behemoth”, deduziu Karsize, embora nunca tivesse visto um, agora, entretanto, havia visto um tanto vivo quanto morto.
Jackaby Maelstrom estava salvo o resto seria conversa...

***

Enfim, a captura

            Curvado em direção ao solo, sustentando o peso com o resto das forças que havia lhe sobrado nos braços e joelhos, o médico da praga ofegava e sentia os olhos arderem, alvos da incessante luz solar. Karsize o segurou pelos ombros e parecia disposto à arrastá-lo de volta para Cadic, mas foi alvo de uma magia élfica que manteve seu corpo paralisado.

            O responsável pelo encanto era Melanias. O elfo ostentava um sinuoso cajado com a ponta em pérola, cujo cabo desenhava as formas de duas serpentes marinhas abocanhando a joia do mar. “Afaste-se!”, ele exigiu e Karsize não pôde contradizê-lo. “Jackaby Maelstrom, você está preso pelas leis da Inquisição. Cuidaremos de seus ferimentos, traremos conforto ao seu corpo e o tornaremos aliado, caso aceite ajudar-nos de bom grado”.

            Cada músculo de Karsize tremia, motivado por um rancor furioso que desejava partir a cabeça de Melanias, mas a magia que anulava seus movimentos era muito forte. Amaldiçoou a magia élfica e apenas pôde assistir o que estava prestes a acontecer:
O corpo do médico da praga movia-se vagarosamente enquanto se contorcia num acesso de gargalhada contida. Sua máscara de corvo e seu longo pescoço projetavam no rochedo a mórbida sombra de um abutre. O breve momento de histeria foi controlado e ele se dispôs de pé, ereto, calmo e seguro. Levou a mão ao rosto e retirou a máscara de corvo, esboçando um icônico e delicado sorriso típico de um indivíduo cortês.

            Todos os elfos pareciam intimidados, exceto Melanias, este mantinha-se embasbacado, impressionado pelo que via. Quando o servo de Laurë finalmente conseguiu falar, saiu quase como um sopro:

“Não é o Jackaby”


As estranhas proezas do médico da praga

            William “Bio” Plague é o nome do estranho médico da praga. “Apenas um servo de Velaska que teve o azar de ser confundido, apenas isso...”, a educada resposta emitida pelo mesmo quando ameaçados pelo julgamento élfico. O resultado não pareceu próspero num primeiro momento: o médico da praga não foi levado pela Inquisição e sua inocência não era uma boa notícia para Karsize.


            Quando a távola de Cadic chegou no último ponto de encontro, pouco se satisfez com as desculpas de Karsize, mas também pouco tiveram tempo para discutir o assunto. Livres da Inquisição e já encarando o caminho de volta para Cadic, Plague apresentou-se como pupilo de Jackaby, mas reforçou o título de azarado: “Definitivamente Jackaby não me queria aprisionado numa caverna esperando ser devorado por uma bruxa”.

E a tal bruxa era uma baba yaga, pois como saberíamos mais tarde, quando Plague contava toda a desventura no Palácio de Cadic, o sangue de Ophellia (que sabia muito sobre a existência de tais criaturas) gelou e sua calma só foi alcançada após uma boa notícia: “Isso que tenho em mãos, senhores, é uma vacina”, falou o médico da praga mostrando um objeto cilíndrico com uma agulha finíssima em uma de suas extremidades, “A vacina contra a praga orc! A conquista mais aplaudida de Jackaby Maelstrom e sinto-me lisonjeado por apresenta-la à filha de Lorde Albion”.

“Agora...”, William “Bio” Plague continuou, “Precisamos falar sobre a possibilidade de estrearmos um hospitalário em Cadic. Seria o mínimo, não é, princesa?”

Karsize escapa por um fio, mas nada acaba tão de repente...

            Nos dias posteriores, Karsize acostumara-se a perseguir o silêncio solitário de sua cabana, mas ele não evitaria qualquer visita dentro desse tempo: uma de Ophellia, mesmo sob os protestos do tempo exigido pela regência, uma do Ithias fazendo uma dúzia de perguntas bastante capciosas e quatro do importunado Adhraim. A última visita, porém, merece certo destaque.

“ Uma cabana muito bem produzida para o gosto dos orcs, Karsize, você anda passando muito tempo com os humanos”, disse Fulgore sorrindo entredentes e lá ficou por mais demasiado tempo, como a visita de um amigo a muito estrangeiro. Andaram se falando e reafirmando o parentesco orc. Karsize desperdiçou injúrias verbais contra todas as raças que pôde, culpou especialmente os humanos e os comparou com os elfos, que viveram onde tiveram de viver, apenas existindo, enquanto os humanos haviam enviado para os orcs a maldição da praga que estes, poderosos e resilientes, haviam se adaptado.

Fulgore, o vermelho, então, falou:

“Monstros, frios, vingativos, donos de um rancor que os deixam incapazes de perdoar. Humanos são geradores de ódio, seus filhos nascem com isso no sangue, eles despertam, viram guerreiros, blasfemadores, egocêntricos e brutais. Não se limitam a quem devem desafiar. Jogamos uma pedra gigante em cima deles e eles a arrastam de volta para nós. Eles não vão desistir, Karsize, pois são como uma praga neste mundo. Ninguém se equipara a eles, a não ser, talvez, nós mesmos...”

            Fulgore foi embora com essa reticência e deixou Karsize preso em seus pensamentos, numa balança de incertezas. O vermelho nem se despediu, saiu quando a noite começava a vagar e respeitou o silêncio do meio-orc. Ele não se despediu e fez isso porque sabia que não ficaria muito longe do irmão, um irmão que havia herdado dois sangues e que havia uma história de rancor e heroísmo vinda de ambas as partes.


Postar um comentário

0 Comentários

Close Menu