O parto
Ali
estava ela, Morgana, mergulhada na escuridão, no vazio, na vastidão, de uma
maneira quase que simbiótica, seus longos cabelos negros se estendiam pelo
infinito, sendo impossível delimitar o seu inicio, meio e fim, o seu corpo
estava inerte e sua pele apresentava a palidez e a frigidez de um cadáver, com
os olhos abertos, parecia olhar para o nada, entretanto, as pupilas dilatadas
indicavam que ali não tinha ninguém. Um estado deplorável para uma criança tão
pequena e indefesa, um corpo inocente sem espírito e sem consciência, mas o que
parecia ser o fim de uma história revelou-se apenas o começo. Ali não era
simplesmente um leito de morte.
Morgana
não foi gerada de forma convencional. Ela não teve o aconchego de um útero, nem
ao menos sentiu o calor de sua mãe, não tinha pais que esperavam ansiosamente
pelo seu nascimento, nem uma família que pudesse ensina-la o que é o amor, em
vez disso, ela tinha o vazio, e do vazio ela foi gerada, sua alma foi forjada
em meio à escuridão. Conforme o tempo passava a sua consciência ganhava
contorno.
A
nefasta história de Morgana deu-se início quando uma voz fantasmagórica cortou
o silêncio, ecoando pelo vazio e chegando aos ouvidos de criança.
- Morgana!
– sussurrava a voz
Em
uma reação involuntária, os músculos do seu corpo enrijeceram, ela serrou os
punhos e rangeu os dentes. Sua pele adquiria, aos poucos, uma coloração vivida.
A voz, então, insistiu:
- Morgana!
E
a miúda, em seu sepulcro, abriu a boca e trouxe de seus pulmões o primeiro
fôlego. Seu corpo tremia por inteiro e as pupilas de seus olhos, antes dilatadas,
se contraíram. A voz mais uma vez se manifestou:
- Morgana!!!
Uma
dor atravessou seu peito, indicando o exato momento em que o seu coração
começou a pulsar e, junto com um gemido que misturava prazer e agonia, a sua
consciência havia nascido. A escuridão que antes era uma extensão de seu corpo,
agora não passava de um manto que há circundava e, ao redor de si mesma,
Morgana escutou aquela voz mais uma vez.
- Morgana!
A mais perfeita de minhas criações! Meu trabalho mais lapidado! É tu que
reinarás entre os vivos e os mortos. – indagou a voz m tom de satisfação e
admiração.
Aquela
voz a deixava apavorada. Seu coração se encheu de angústia e o medo fez morada
em sua mente. A voz insistiu:
-
Morgana, o meu ódio será a sua herança!
E
finalmente a voz cessou. Por alguns minutos, Morgana permaneceu quieta,
assustada e confusa, sem nada entender, sem nada enxergar e no mais completo
silêncio que só foi quebrado, sabe-se lá quanto tempo depois, pelo som que
vinha de longe. Um som que teve início taciturno e foi aumentando
gradativamente. Algo parecido com o estalar de gravetos na terra. Morgana mal
conseguiu se mexer, quando o som parou repentinamente.
Ela tremia de medo quando o
despedaçar de uma pancada fez surgir, diante seus olhos, uma grande fenda.
Junto ao pavor veio a legítima reação de seu súbito grito de espanto. Uma luz
pálida a cegou e Morgana apenas pôde sentir os pingos de água em sua face e a
lama escorrendo junto ao seu corpo.
Procurando se proteger, ela levou as mãos ao rosto e sentiu algo
agarrá-la. Três pares de braços esqueléticos desenraizaram-se da fenda e, com
um movimento brusco, a puxaram para a lúgubre luz.
Ali
estava Morgana, tingida pela lama. O céu estava nublado e as lágrimas de menina
facilmente se confundiam com as gotas da chuva. Assim como um recém-nascido,
ela chorou copiosamente, mal conseguindo observar o que estava a sua volta. Só
depois de muito tempo, ainda em pranto, ela criou coragem para olhar ao seu
redor.
O que ela viu jamais será esquecido:
Milhares de esqueletos. Alguns
debruçados sobre sepulturas recentes, enquanto a imensa maioria mantinha-se de
pé orientada na direção da cova em uma disposição circular. Uma multidão que até parecia ter inteligência
o suficiente para apreciar aquele "parto".
Morgana
não veio ao mundo através dos cuidados de uma parideira. Ela veio ao mundo,
guiada pelas mãos mortas-vivas que naquela treva habitavam. Ao olhar para baixo
e se deparar com sua cova, sentiu uma forte ligação com aquele ambiente de
morte. Em seu íntimo, ela sabia que de
alguma forma a sua vida estava atrelada ao que aquela sepultura representava. Como
se existisse um cordão umbilical invisível que não pudesse ser cortado por
nenhum mortal.
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