Os Atemporais - Capítulo 09 - A longa jornada


Agora, meu caro amigo leitor, escrevo esse último pergaminho antes de adentrar a masmorra em busca de mais respostas. Jamais deixarei de escrever sobre os feitos dos atemporais, mas a primeira leva de anotações estará à caminho da Guilda dos Escrivães nos Principados de Citadel, os senhores de lá se responsabilizarão por distribuir meus papiros para o restante do reinado. Solicito zelo e que seja dada a devida atenção aos feitos heroicos que serão narrados desta jornada. Os papiros serão organizados num tomo, junto com os desenhos em carvão que fiz tentando detalhar as criaturas e estruturas das ruínas dos gigantes de outrora, de modo que outros possam encontrar nestas anotações respostas para suas jornadas particulares nessas terras inóspitas.

Falta-me detalhes demais para descrever o acontecido com meus amigos de jornada. Se você esteve me acompanhando até agora, sabe que permaneci na biblioteca do velho Ithias pelo tempo que os demais atravessaram caminhos tortuosos na ruína. O que tenho aqui, neste pergaminho, são relatos escritos e argumentados à grosso modo pelos heróis da jornada. Eu tive deveras preocupação em descrever a linha de ações conforme elas me foram contadas.

Depois que o casal Salvatore resgatou a mim e o perafita das profundezas oceânicas, o grupo discutiu a necessidade de retorno enquanto ao redor de meu corpo frio e pálido. Teomund tomou a decisão final, inscreveu uma das runas de salto da jornada na caverna que se sucedia à garganta do oceano e a interligou ao caminho que antes havia declarado seguro. Foi dada ao casal Salvatore a missão de levar meu corpo e o perafita para as câmaras anteriores, de modo que ambos não comparecerão em parte dessa narração.

Sebille pôde sair de seu esquife. O recipiente foi deixado às escuras, bem próximo à runa de salto da jornada, pois o grupo deduziu que dali em diante não mais seria incomodado pela água corrente ou luz do sol. Isso deixaria Cebolas livre da injusta carga extra. 

Guiados pelo faro de Freya, que tomou a dianteira do grupo, os atemporais avançaram por cavernas que por vezes se misturavam à ruínas manufaturadas. Aparentemente o tempo havia conseguido arruinar a estrutura que compunha o interior da civilização dos gigantes. O grupo atravessou salões inundados por água empoçada, mas muito limpa. Varuz abriu caminho por um região pertencente à uma legião de fungos fantasmas, pois os esporos dessas criaturas eram  incapazes de afetar os mecanismos do forjado de batalha. Os pássaros azuis foram invocados pois eram bem mais sutis do que as bolas de fogo e relâmpagos que Teomund e Ithias podiam conjurar.

Os fungos provavelmente faziam parte da cadeia alimentar de muitas criaturas que viviam naquele subterrâneo cercado pelo oceano. As formações rochosas ficaram cada vez mais influenciadas pela calcificação causada pela água salgada, de acordo com os relatos de Ithias. A fauna e flora de um ambiente subterrâneo há muito esquecido são de uma estranheza inenarrável, de modo que invejei meus colegas por estarem participando dessa exploração. Sorte minha que o velho mago observador de estrelas também estuda com afinco as cavernas que perambula e isso ajudou um pouco à sanar minha ansiedade.

O grupo foi atacado por raízes escavadoras tão grandes que eram capazes de estrangular ettins - esses gigantes de duas cabeças não foram vistos vivos na masmorra, apenas suas ossadas e tufos de pelo foram encontrados - note, meu caro leitor, que essas raízes, apesar de existirem na selva de Chattur'gah e terem sido encontradas versões adaptadas destas mesmo nas tundras que antecedem o reino de Nevaska, devemos salientar que elas não vivem em vales pedregosos como os de uma caverna subterrânea. Essas eram tão firmes e fortes que podiam escavar e despedaçar a pedra, semelhante ao que os vermes púrpura fazem no Abismo da Ventania. Sebille usou de seus poderes necromânticos para desidratá-las, parte delas definharam - Ithias trouxe algumas lascas da raiz para guardar num dos muitos potes encontrados aqui na biblioteca - e o restante fugiu. Deduzo que deve haver alguma árvore ou vegetação tão imensa e antiga quanto os próprios gigantes, incrustada em algum ponto dessas ruínas, responsável por essas raízes monstruosas. O grupo não se deparou com algo do tipo enquanto estavam lá embaixo, em todo caso.

No segundo dia de exploração, o grupo se deparou com a ossada de um dragão dourado, de acordo com as avaliações de Ithias, que tinha alguma experiência em relação aos dracônicos,  o maior que o velho já teve o prazer de encontrar. Havia magia de proteção incrustada em suas vértebras, encanto responsável por tornar aqueles restos dracônicos tão firmes quando a rocha durante todo esse tempo. Teomund anotou as runas específicas detalhadamente e as transcrevi nesse papiro de forma absolutamente fiel, mas, até então, creio que não terei tempo suficiente para identificá-las. 

A ossada do dragão ancestral estendia-se como uma longa escadaria que se iniciava na extremidade da cauda e culminava no interior do crânio dracônico. Teomund inscreveu uma runa de salto da jornada numa pedra próxima à cauda, que era o caminho que todos deveriam tomar.

O grupo levaria algum tempo caminhando aos tropeços nas camadas ósseas da criatura. Sebille apreciou a escuridão ao redor do local. Ela, que é capaz de enxergar muito mais longe do que todos os demais quando imersa em completa treva, contou-me sobre as dimensões daquele salão, cujas paredes não podiam ser vistas. Pode imaginar, meu caro leitor, você em uma expedição como essa, segurando uma tocha mundana nas mãos e sendo apenas uma faísca em meio ao estômago da maior masmorra já explorada que se tem notícia, percebendo que adiante talvez seja infinito e que voltar para trás já não é uma opção? 

Sethos descreveu-me uma sensação terrível que teve. Ele imaginou um dos antigos titãs os observando de longe, em meio àquela escuridão infinita. Disse poder sentir o bafejar da criatura e seu olho a perscrutar, cinzento como uma nuvem. O clérigo de Selloth, em determinado ponto, quis acender um sol naquela masmorra, mas foi impedido por Teomund, que explicou que o lampejo poderia incomodar as criaturas que, de alguma forma, existiam naquela escuridão. Teomund, assim como eu, sabe que fantasmas e aparições costumam flutuar, como névoa, inconscientes ignorando a barreira do tempo e espaço e as trevas são seu templo. Ali, qualquer ser etéreo poderia ter a dimensão de um titânico. Sethos provavelmente sabia disso também, mas estava claro que a escuridão plena o incomodava. Sebille debochou disso e afirmou que havia muitos deles flutuando, feito águas-vivas, ao redor de tudo, então uma névoa fria, porém não muito densa, acercou tudo.

O grupo chegou na metade da travessia que se estendia pela espinha dorsal do dragão. Teomund e Ithias, assim como todos os demais, puderam enxergar pequenos pontos brilhantes incrustados na treva. O brilho emitido era às vezes branco, às vezes vermelho, de modo que, conforme me descreveram, parecia ser o céu numa noite muito estrelada. Teomund exigiu que o grupo parasse ali por algumas horas e, apesar de ser questionado sobre essa decisão, ficaram enquanto ele e Ithias observavam as estrelas da caverna.

Freya esmagou algumas ervas e preparou um unguento - uma arte que ela parece ter herdado da avó - então o passou no nariz e bochechas, de modo que parecia uma pintura de guerra. Também passou um pouco no focinho da pele de urso que lhe servia de cobertor e armadura. O unguento tem um cheiro forte. Freya disse que passou aquilo no rosto pois queria anular, ao menos temporariamente, sua capacidade de farejar, pois conseguia sentir o cheiro como o de mil corpos atulhados, sangrando, cheios de vermes. Aquilo lhe enojava e ela não podia sossegar em paz.

Ithias conjurou alguma magia específica e descobriu que os pontos rubros brilhando no céu da caverna pertenciam à milhares de drakhains incrustados naquela escuridão. Esse material poderoso e muito raro - já comentado em meus pergaminhos anteriormente -  é capaz de absorver e anular as magias e memórias do mundo, de modo que aquelas farpas cristalinas provavelmente foram responsáveis por tornar essas ruínas esquecidas do mundo durante todo esse tempo. Teomund disse-me que havia uma quantidade absurda dessas coisas lá, tantas que seria capaz de afetar até a mente de um deus. 

Aliás, as raríssimas armas fabricadas com os cristais de drakhain têm a fama de serem capazes de ferir divindades, embora isso não tenha sido inteiramente comprovado. A necessidade de informação era tamanha, que Teomund decidiu que ficariam por ali mais algum tempo até que encontrassem uma forma de vasculhar completamente aquela escuridão. Tomando um cuidado extremo em relação à contagem dos dias, o filho de Sigmund deduziu que estavam no quarto dia da jornada quando foram surpreendidos pela chegada do casal Salvatore. 

Ian e Emerald são um com a escuridão e Teomund não escondeu do restante do grupo que esperava pela dupla para averiguar o local. De bom grado, o casal aceitou a tarefa, tornaram-se sombra e mergulharam na escuridão, em direção ao teto de estrelas... e nunca mais voltaram.

Isso mesmo, meu caro leitor, perdemos os sombrios. Quando o grupo retornou para a biblioteca de Ithias, desconfiei por não ter notado a presença dos dois juntos com os demais, mas deduzi que, sendo sombras, eles poderiam aparecer e desaparecer quando bem calhasse. Escrevo este pergaminho para eternizá-los em nossas memórias caso os efeitos das ruínas dos gigantes de outrora caiam sobre nós. Tentaremos resgatá-los de alguma forma e deixaremos pistas, caso encontremos alguma, para heróis que futuramente se engajarão no rumo desta aventura. Por enquanto, devo continuar.

Sebille ficou particularmente irada com aquela situação. Alegou que Teomund havia encaminhado os Salvatore para a morte. Ithias tentou acalmá-la em vão. Varuz interpôs-se diante o filho de Sigmund, e Cebolas à frente de sua mestra. Arafat, que já havia perdido amigos de forma similar, pareceu escolher o lado de Sebille e Freya rosnou em direção à ele. As chamas no cajado de Sethos fervilharam com vontade, há tempos ele esperava por aquela oportunidade e facilmente desintegraria a vampira em segundos. Teomund tomou a frente e mandou que todos parassem com a intriga, preferiu ter uma conversa particular com Sebille - conversa que, entretanto, não me foi divulgada para descrição nesse pergaminho.

De alguma forma Teomund conseguiu não somente acalmar os ânimos de Sebille, mas também convencê-la à tentar ajudá-lo de outra forma. No quinto dia de trevas, Sebille chamou Cebolas e o matou, depois arrancou dele a alma e o tornou um espectro, um allip, para ser mais específico. O caduco Cebolas pôde enxergar o que sua mestra podia: realmente haviam centenas de espírito mergulhados no mundo etéreo que os acercava naquele momento e, sim, eles se assemelhavam a águas vivas, pois pareciam flutuar num profundo oceano de modo tão acalentador que o próprio Cebolas decidiu que não seria má ideia existir assim. Dominado pelas ordens de Sebille, o espírito do guerreiro ancião livrou-se da hipnose e a bruxa indicou com o dedo a direção que ele deveria seguir. Ele voou até lá e retornou.

Agora, meu caro leitor, deixe-me resmungar um pouco: Cebolas, com toda certeza, seria o último indicado a realizar essa exploração e trazer de lá alguma informação consistente, mas era exatamente o único que podia fazer isso. Ele era a única opção. Se você estiver questionando porque Teomund ou mesmo Ithias não conjuraram magias de voo neles ou em qualquer outro do grupo, a resposta é simples: lembra-se que expliquei que os perigosos drakhain são capazes de de absorver ou mesmo anular magias? 

O poder de tornar Cebolas um espectro e controlá-lo é uma habilidade sobrenatural de Sebille e, mais do que isso, a transformação é permanente - a menos que seja dissipada pela própria posteriormente, como você haverá de ler nos parágrafos seguintes - e não mágica, sendo que o velho caduco estava completamente sob as ordens da bruxa. Todos temiam perder mais um membro do grupo, afinal, o poder de atravessar as sombras do casal Salvatore é igualmente sobrenatural e isso não colaborou para que eles fossem bem-sucedidos na tarefa. Sebille descreveu-me que, por vezes, sentiu que a fina linha de prata que interligava Cebolas ao corpo dele iria se partir, como de fato ocorreu, e ela se viu obrigada à agarrar o cordão da vida com as próprias mãos.

A cena que alguns descreveram sobre o acontecido é um tanto inconsistente. Imagine um pescador sem vara, segurando apenas uma linha muito firme e inquebrável com as mãos e que, na extremidade do anzol, um peixe muito grande, capaz de alimentar a família do pescador durante uma semana, tentasse à todo custo se livrar do destino cruel de ser pescado. A linha se enrolaria nos braços e mãos do pescador e não haveria tempo ou esforço que o fizesse amarrá-la à sua barca ou a um remo. Diante disso, a fina linha começa a roçar-se com a carne diversas vezes, retaliando como a faca mais aguda, enquanto as veias saltam devido ao esforço, fazendo a circulação do sangue tornar-se ainda mais forte. Talvez isso chegue perto da descrição de dor sofrida pela bruxa. Suas mãos ficaram completamente negras e envelhecidas, unhas apodreceram e caíram. A fome dos vampiros à atacou e o frenesi começava a tomar conta de sua mente.

Freya, que, descobri, já havia presenciado situação similar com um amigo, agarrou-a com um brutal abraço de urso e as presas da vampira cravaram em sua pele, sugando de forma animalesca. As órbitas dos olhos de Sebille se reviravam em êxtase, então, Cebolas finalmente retornou ao corpo e a bárbara teve de lutar com a bruxa. Mesmo a força descomunal de Freya não foi capaz de fazer a vampira largá-la com facilidade. As duas se contorceram, caíram no chão, chegando a rolar perigosamente para as bordas da ossada de dragão e encarar a escuridão infinita que habitava nosso caminho. Freya transformou-se num urso marrom, agarrou Sebille pelo pescoço e arrastou sua cabeça pelas vértebras que compunham o esqueleto dracônico, depois largou-a no chão. Sethos adiantou-se e as chamas em seu cajado arderam, Sebille entrou em pânico e correu de volta para saída, onde foi aprisionada por um orbe de força conjurado por Teomund. Lá, ela ficaria presa até que o frenesi passasse.

Cebolas simplesmente esqueceu de tudo que ocorreu entre ele e o céu da caverna e podemos suspeitar que este foi um efeito dos drakhain, embora eu reconheça que mesmo sem influência dos cristais rubros, seria difícil compreender qualquer explicação do velho caduco . O tumulto da luta entre Freya e Sebille foi tamanho que, apenas quando a caverna parou de ecoar seus gritos e urros, pudemos ouvir o estrondo ecoante que parecia vir à quilômetros de distância e se tornava mais alto e assustador conforme se aproximava.

Ithias disse reconhecer o barulho, era como o de uma onda gigantesca, um tsunami de proporção jamais antes ouvida. O oceano estava desabando sobre eles. O velho aconselhou que todos corressem e, com exceção de Sebille, que ainda estava aprisionada, a maioria escolheu o caminho adiante, pois parecia mais próximo ao chão firme. Filetes de água começaram à escorrer do céu da caverna e logo se tornaram rajadas. Um frio intenso e uma forte pressão atmosférica invadiram o salão do esqueleto dracônico. Muitos ficaram temporariamente ensurdecidos devido à mudança do tempo. Varuz conjurou uma bola de fogo diante uma cortina de água que havia se formado perante todos e ela evaporou temporariamente. Ithias transformou-se num pardal e voou. Arafat esvaneceu em saltos enquanto seu manto avermelhado tingia a escuridão. Cebolas se separou do grupo correndo até onde o globo de magia prendia sua mestra. Sethos ergueu o cajado e finalmente fez transbordar dele uma luz intensa que fez com que todos pudessem enxergar muitos metros à frente, foi aí que aconteceu o inesperado.

A espinha dorsal do dragão se contorcia, serpenteando vagarosamente. Ele parecia disposto à despertar à qualquer momento, mudando sua posição de sono eterno. Sethos amaldiçoou o imenso e atemporal morto-vivo e todos se prepararam para lutar - e sobreviver - de alguma forma, até que Teomund fez com que todos parassem. A ossada dracônica não estava despertando, mas o espaço ao redor de todos parecia se contorcer. O mago pediu que aqueles que não pudessem voar se agarrassem à algo. 

Dentro do orbe de magia, Sebille tombou e rolou como se estivesse presa a um brinquedo de Yule, cheio de neve sangrenta. Cebolas agarrou-se na cauda do esqueleto. Varuz, Arafat e Freya às vértebras imensas. Theomund deixou-se cair para retornar flutuando e Ithias bateu as asas mais rápido. A água parou de jorrar, parte do grupo ficou imediatamente enjoado enquanto o espaço girava e os punha de pé novamente, em cima do caminho de ossos. Estavam todos de cabeça para baixo e não havia mais diamantes e drakhains formando o céu da caverna.

Enquanto todos questionavam o que havia acontecido, Teomund comandava para que todos retornassem. Iria ver se a runa de salto da jornada ainda funcionava. E funcionou...

Retornaram até mim, lutando para que não esquecessem cada detalhe daquele absurdo acontecimento. Notaram que as demais runas haviam sido apagadas ou deterioradas e que isso parecia ter sido obra de alguém ou alguma coisa, por isso, ficaram perdidos no labirinto de cavernas e escuridão e, como não tinham a mim para guiá-los, usaram de seus acervos de magia e ainda assim demoraram quase uma semana para encontrar o caminho de volta. 

Agora precisam de mim lá dentro e estou mais do que disposto para participar dessa jornada. Como disse ao senhor, meu caro leitor, esse será o último pergaminho que escrevo antes de adentrar as ruínas mais uma vez e, talvez, quem sabe, não tenhamos o prazer de nos conhecer, mas, por enquanto, desejo à você, à mim e aos demais atemporais, toda a sorte que Endimion puder nos conceder.


 

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