A canção decisiva na taverna do Dragão Uivante


O silêncio acompanhou o baque da esfera vítrea ao cair no chão e rolar pelo assoalho da Taverna do Dragão Uivante. “Helladar!”, exclamou Jackson indo ao encontro do artefato amigo. A bola de cristal estava opaca, livre de magia e existência, “Helladar, amigo, acorde, vamos, acorde!”, o pequeno halfling erguia a esfera para o alto e a agitava tentando fazê-la acordar, “Isso não vai adiantar, Jackson”, Javert, outro halfling, alertou, “Helladar precisa de algumas horas em repouso, gastou muito de suas energias”.

Javert e Jackson eram ambos pequeninos de pés peludos, e ambos bardos. Jackson não somente era conhecido pelas belíssimas apresentações em palácios, mas também pela sorte que o acompanhava, sorte que havia o protegido na masmorra dos mil segredos, aventura que lhe garantiu a bênção da deusa Chesire no final das contas. Javert era um outro tipo de bardo, mais reservado, como diziam, havia deixado o bandolim e os demais instrumentos de lado, não que não mais ousasse tocá-los, na verdade ele fazia isso regularmente, mas a vida de contador de histórias lhe cabia mais.

Naquela taverna cercada pela treva da Mortalha, seus encargos eram trazer palavras de calma e esperança para os refugiados que gradativamente mergulhavam na demência provocada pelo desespero de serem incapazes de enfrentar o perigo que os assolava. “Você viu como Ofélia e os outros saíram daqui? Adhraim estava bem incomodado, ele não conseguiu aquietar os ânimos dos refugiados”, comentou Jackson, limpando a esfera de cristal com sua capa e a envolvendo em seus braços, como quem aninha um bebê, “Ele não deveria se sentir incapaz, nesta situação, nem nossas canções conseguiriam espantar todo o medo enraizado nas mentes deles”, respondeu Javert, ele estava em pé numa cadeira que acompanhava uma das mesas do estabelecimento, contava o número de virotes que lhe havia sobrado, munições mágicas conquistadas em acordos que o pequeno bardo não ousava contar.

“Chá, senhores?”, oferecia Charlotte, eram pequenas e apropriadas xícaras de porcelana contendo líquido fervente apoiadas em uma bandeja de madeira-fina. Os olhos de Charlotte pareciam distantes, como sempre pareceram, ela transparecia uma paciência incomum diante a situação que todos aguardavam. Não parecia desse mundo. “Obrigado, Charlotte!”, serviu-se Javert, recebendo a xícara, soprando o conteúdo e bebericando as primeiras gotas, “Está ótimo, como sempre”, e sorriu. O sorriso foi retribuído. Jackson fez o mesmo enquanto mantinha um olhar súbito de desconfiança, bebericou e afirmou “está mesmo muito bom”, Charlotte sorriu e se ausentou, como uma boa menina. “Não é esquisito, Javert?”, perguntou Jackson, “O quê?”, “O jeito que Charlotte se comporta, como se nada estivesse acontecendo”, Javert preferiu ficar em silêncio, mas Jackson sabia que o amigo sabia de muito mais coisa… não era este o tempo de fazer tais perguntas.

A xícara de Javert, agora apoiada na mesa, começou a tremer e de seu líquido propagava pequenas ondas. Javert e Jackson se entreolharam, prevendo o pior. Cadeiras e mesas passaram a fazer o mesmo, tremiam como se antecipassem um grande terremoto. Charlotte, com calma e precaução, protegia as garrafas de bebida na estante, “Se afaste do vidro, Charlotte!”, gritou Javert. Ela obedeceu. Então, repentinamente, os bardos ouviram o estilhaçar do vidro de uma das janelas do andar superior, seguido dos gritos e choros desesperados dos refugiados que ocupavam os quartos da taverna. Tudo começou a estremecer, as portas rangeram vítimas do deslocamento da terra, e as janelas de madeira foram socadas pela forte ventania de fora até que abriram-se, permitindo a entrada da furiosa tempestade.

Javert segurou seu chapéu, evitando que ele fosse arrastado pelo vento e gritou “Agora, Jackson!”, e Jackson envolveu Helladar com a capa, livrou suas mãos e tinha agora a flauta na boca. Javert segurou firme sua besta pesada, rente ao corpo, encostada ao peito, como faria com um bandolim. Os dois começaram a entoar a mesma canção e foram envolvidos por uma cúpula de proteção sônica. Lá de dentro eles assistiram a taverna reagir ao estrondoso som que vinha de fora. Quadros caíram, chamas se apagaram, garrafas estouraram, cadeiras e mesas pareciam andar pelo assoalho, portas e janelas se escancaravam e todo tecido drapejava para a mesma direção, como se soprados por uma forte ventania. Não demorou até que o estranho pó vermelho invadisse a taverna, rodopiando pelos ares, inofensivo, e finalmente cedesse à gravidade.

O barulho finalmente foi embora, “Eles conseguiram!”, afirmou Jackson sorridente. Javert procurava a presença de Charlotte, ela estava do lado de fora, olhando para o céu. Os refugiados, ainda com o medo estampado na cara, mas com o ar de alívio saindo de seus peitos, desciam para o térreo notando que todas as entradas e saídas da taverna estavam liberadas. Junto à Jackson e Javert, estes acompanharam a apreciação de Charlotte à vista do lado de fora. Ainda chovia e relampejava.

Todos notaram a figura escura e humanoide voar no céu chuvoso, “O bruxo…”, os refugiados balbuciaram.

“Tudo está prestes a acabar”, sussurrou Charlotte…

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