[Personagens de Outrora] Recordações de um chamado


Além das terras de Azran, ainda após o reino da Inquisição e bem além dos domínios de Rivergate, existe uma terra de pessoas excêntricas, de cultura totalmente diversificada do resto do mundo, onde um velho guerreiro de largas vestimentas drapejantes como pétalas da flor de cerejeira, medita no alto de um intrínseco amontoado de pedras às margens litorâneas. O vento ganha força, como se empurrado pelas ondas do litoral que acerca aquele ambiente e os longos cabelos alvos do sábio agem como chamas prateadas sopradas pelo gigante que um dia foi enterrado.

- Abra os olhos seu maldito samurai velho e beberrão! - a voz de um ranzinza ecoa da base da colina - Urameshi, seu ridículo! As únicas vezes que te vejo em estado de meditação é quando lhe falta saquê!

O ancião abre os olhos adornados por penteadas sobrancelhas brancas.

- O tempo passa devagar sem a minha bebida, velho amigo. Eu preciso adormecer minha mente para que ela consiga suportar a lentidão e o capricho dos anões. Seja bem vindo ao seu lar novamente, Rurik.

Rurik era o anão de voz trovejante que gritava à ralhar com o velho sábio. Ele era demasiado acima do peso para se aventurar por aquela escorregadia formação de rochas e o barril cheio de saquê que ele carrega nas costas dificultava muito esse trabalho. Rurik era também um rico comerciante das novas terras anãs de Corantha, um dos mais ricos.

O vento salgado do litoral soprou guiando um repentino silêncio entre as duas figuras.

- Vai vir? - gritou o anão.

- Ora, mas é claro que não. Você quem virá, amigo. - respondeu o velho samurai com vestes de cerejeira.

- Custa muito mais ir até aí do que você vir até aqui! - ralhou Rurik.

- Mas se eu for até aí, não poderemos apreciar o lindo horizonte que a natureza nos oferece esta manhã. 

- Mas é o mesmo horizonte de todas as manhãs, seu idiota! - concluiu Rurik após olhar para imensidão de céu e nuvens.

- Por isso estou aqui todas as manhãs.

A calmaria de Urameshi deixava Rurik irado.

- Vou deixar seu saquê aqui em baixo, velho maldito, você resolve a hora que virá buscá-lo!

- Porque não sobe, meu velho amigo. Foi tua mulher quem lhe proibiu de fazer isso ou tuas banhas que estão mais pesadas que o tacape de um ogro das montanhas?

Rurik irou-se, chutou a terra e salivou na barba, mas o insulto serviu. Um minuto depois ele estava na formação de rochas oceânicas, ao lado de Urameshi e ofegante:

- Lembra que eu lhe avisei pra nunca mais falar da minha mulher, amigo?

Urameshi assentiu calmo e de olhos fechados.

Rurik jogou o barril de saquê na enseada. Ouviu o barulho dele caindo na água, limpou as mãos e sentiu-se satisfeito.

- Você vai ter que suportar um pouco mais a lentidão anã - Rurik afirmou com um sorriso sádico no rosto.

- Você sabe que uma náiade virá me entregar o barril a qualquer momento, não é, meu estúpido amigo?

- Disso bem sei, velho decrépito. Já as vi fazendo isso antes, mas dessa vez eu tenho meus truques.

Rurik baixou as calças e Urameshi assistiu o anão aliviar a bexiga enquanto o mesmo mirava a urina no barril jogado na enseada 

- Nem as náiades aguentariam o cheiro da urina anã. Creio que você saiba, meu amigo, que, mesmo regado pela água do oceano, o cheiro dos meus testículos persistirá eternamente profanando o seu saquê.

O vento salgado do litoral soprou mais uma vez abençoando o silêncio do momento.

Urameshi caiu na gargalhada e Rurik o acompanhou.

- Anão filho de um troll das cavernas sem bagos, não sabe que é perigoso demais mostrar suas bolas para um samurai armado com sua wakizashi?

- Um velho como você não conseguiria empunhar uma espada curta sem parecer ridículo! Faça-me o favor e deixe-a guardada. Não desmanche a imagem do guerreiro de outrora que ainda carrego nas minhas lembranças... para o seu bem.

- Ainda consigo empunhar a katana melhor do que você consegue segurar o seu pinto. Sairia hoje mesmo para uma jornada, não fossem os avisos de Lathandril...

- Lathandril - Rurik pensou alto - onde este merda será que está? - o anão sentou-se ao lado de Urameshi e passou a contemplar o horizonte.

- O negro está mexendo com coisas importantes nos reinos ocidentes, foi a última coisa que ouvi.

- Neste caso, sei mais do que você, irmão. Sei que Lathandril está mexendo com coisas que não deveria.

- Isso não é novidade. O negro nunca para. Ele sempre se arrisca.

- Acho que é isso o que o faz um mestre do conhecimento.

- Sabe, meu pútrido amigo anão, às vezes recordo-me das nossas aventuras. Lembro-me de como tudo começou... com o albino.

- A única coisa que lembro do albino é de seu sangue jorrando em meu machado. Ainda guardo aquela arma. Nunca mais foi lavada ou tratada, mas, sequer carrega marcas do tempo e da ferrugem. Aquele sangue tem seus mistérios.

- Bons tempos... 

- Foram ótimos, mas agora, meu caro amigo desgraçado, tenho coisa melhor: mulher, filhos, segurança, riqueza e uma pança avantajada pela boa ventura. Tenho minhas prioridades.

- Não invejo você. Sua mulher é horrível.

- Velho filho de duas putas! Fala isso porque todas as suas crias são libertinos do povo do mar que você nem conhece.

- Esse é o preço por se apaixonar por uma náiade...

- Você quis dizer por várias náiades... ou por todas elas?

- Você tem sua mania de riqueza e eu tenho minhas manias na volúpia. Isso não nos faz tão diferentes.

Os amigos pararam suas gargalhadas e xingamentos durante algum tempo, assistindo o balançar das ondas.

- Com tristeza assisto o que me torno enquanto espero o chamado de Lathandril - comentou Urameshi, cortando o silêncio.

- A espera pode acabar a qualquer momento. Você não tem força ou habilidade nem para cortar os próprios cabelos com uma adaga. A velhice te alcançou, meu bom amigo... e logo a morte fará o mesmo e, sabemos bem que você estará vivo quando o dia chegar, então, não pode durar mais cinquenta anos, não é?

- Essa é a verdade nua e cruel.

- O que nos resta é esperar e assistir sua cara feia ficar cada vez mais enrugada.

- Sim. Esperar. Mais uma vez... esperar uma espera mais lenta que os anões.

***

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