Os atemporais - Capítulo 04 - O salão de olhos vigilantes

Tudo ocorreu de forma um tanto repentina. Ian e Emerald mergulharam nas trevas. Arafat, Cebolas e Freya aguardaram a ação de Sethos. A múmia adiantou-se para o centro do círculo localizado no meio do salão. Entramos reconhecendo que a luta seria inevitável e melhor seria nos posicionarmos da forma mais eficiente. Arafat na ponta esquerda, Freya na direita e Cebolas pronto à investir caso qualquer das criaturas abrisse caminho pelo meio. 

Sethos argumentou que seria imprescindível usarmos tudo que podíamos no primeiro minuto da batalha, pois o encanto divino que ele arrancaria do lampejo divino seria apenas uma vez realizado. Avancei com o clérigo, precisava ficar perto dele tanto para minha proteção, quanto para compartilhar de minha sorte. Os clérigos de Endimion partilham dessa capacidade de manipular a sorte algumas vezes por dia e isso já me ajudou bastante. Lembro-me de certa vez ter sobrevivido à uma chuva de meteoros ileso, mesmo estando bem próximo ao epicentro da magia. As rochas incandescentes simplesmente quicaram para longe do ponto onde eu estava.

Agora, sobre o salão, imagine uma biblioteca imensa de dois andares cujas prateleiras de suas estantes foram esculpidas na rocha de forma curvilínea e no lugar de uma quantidade absurda de livros estivessem alguns orbes tão empoeirados que as camadas de terra impossibilitassem enxergar o brilho que estes irradiam. O chão possui essas marcas arcanas escritas numa língua há muito esquecida, enterradas por uma fina camada de poeira que logo seria varrida conforme a invocação dos beholders se concretizasse e de dentro dessas fissuras um brilho dourado cintilaria na forma de seu respectivo símbolo, flutuando fantasmagoricamente até uma altura de dois metros para então esvanecer como se soprada pelo vento. Eu pude ver esse vento circular ao redor do círculo de invocação criando um tipo de véu de poeira obscurecente e sufocante. Então, aqueles orbes nas estantes começaram à rachar e uma luz esverdeada e nítida pulsou enquanto carne e escamas se avolumavam quebrando a casca pétrea que havia os aprisionado durante milênios. Pude ouvir os olhos principais dos beholders se abrindo num estalo enojante enquanto eram lubrificados pelo líquido que umidifica suas retinas e a saliva se formar aos borbotões deslizando em filetes por entre as presas pontiagudas da criatura. Então, eles começaram à flutuar, embora tão pesados quanto uma rocha de mesmo tamanho. Suas dimensões passavam de dois metros e meio e haviam exemplares ainda maiores, de olhares ainda mais astutos e malignos. Eles notaram nossa presença e avançaram famintos, cada um com uma dezena de tentáculos cujas extremidades se abriam globos oculares menores pulsantes de magia exterminadora. 

Beholder abismal


Sethos amaldiçoou aquelas criaturas antigas revelando seus pecados mais perversos e uma luz cegante projetou-se do lampejo divino. As chamas das velas fantasmas no cajado e nos crânios da armadura de Sethos flamejaram mais vividamente e todos ali puderam ouvir meia dúzia de vozes acompanhar as palavras de extermínio do clérigo do sol. Os beholders, já acostumados com a total falta de claridade, foram golpeados por uma energia que sobrepunha suas capacidades de dissipar. Foram surpreendidos. Ganiram de dor e exalaram cinzas que tinham o cheiro de carne apodrecida. 

Eu gritei para o restante do grupo. Era hora de agir. Arafat saltou em uma das prateleiras e correu, o manto vermelho, ainda não afetado pelos olhos dissipadores dos beholders, acompanhou seus movimentos e faziam-no desaparecer e aparecer em instantes. As grevas que compunham a armadura de adamante emitiam um barulho metálico proposital até que ele pulou no vazio e só havia o silêncio rodopiando ao seu redor. Firmou a espada larga nas manoplas e girou como um redemoinho arrancando uma dezena de tentáculos em beholders sortidos que estavam no meio do caminho. O frio acompanhou o guerreiro, sua barba tornou-se farpas de gelo e seus olhos vermelhos sangraram fazendo flutuar gotículas enquanto seu corpo caía do salto. Ele agarrou a cabeça de Hydro camuflada dentro de seu manto, apontou sorridente para os beholders e uma tempestade de Nevaska foi invocada. A vastidão gelada corroeu carne e escamas, tornou o corpo de meia dúzia de beholders vítreo e estes se estilhaçaram quando finalmente caíram no chão.

Cebolas investiu contra o beholder mais próximo de Sethos e cravou a espada larga no olho central. Agarrou firmemente, de uma forma um tanto ridícula, escranchou-se na criatura flutuante, puxando seus tentáculos como puxaria as rédeas de uma montaria e a fez chocar-se com outro beholder atordoado. Arrancou a espada larga do primeiro fazendo jorrar uma cachoeira de sangue e vísceras e perfurou a fina camada de pele escamosa abaixo da bocarra do segundo. Segurou um dos tentáculos e o fez de pêndulo para aproximar-se de um terceiro e cravar-lhe a espada entre as gengivas laterais. Uma tempestade de sangue choveu sobre mim e Sethos que estava parado de braços abertos, como se invocando uma das sete maldições de Quéops.

O chão começou a tremer quando o urro de Freya invadiu o salão e seu corpo foi tomando proporções gigantescas enquanto pelo e presas brotavam de sua carne. Uma camada óssea brotou a partir de sua nuca e uma espinha dorsal dura como aço formou uma meia armadura. Freya, na forma de urso atroz, alcançava quase quatro metros. Em toda sua ferocidade, agarrou um dos beholders e espremeu-o até espocar, depois o arremessou contra outros certeiramente. Seus ataques consecutivos atingiram três outros beholders, espancando-os e lançando-os fortemente contra as paredes próximas, de modo que se a masmorra não fosse tão firme, Freya teria desabado toda ela por cima de nós. Ela estava pisoteando uma quinta vítima quando a luz do lampejo começou à diminuir.

Já havíamos feito sangrar mais da metade de nossos inimigos. Cebolas saltou para perto de mim xingando os oponentes e reclamando de dor nas costas - o que era incomum, já que na maioria das vezes ele fala do joelho ou tornozelo. Arafat escondeu a cabeça de Hydro novamente no manto e deslizou, como quem patina num rinque de gelo, para próximo de Sethos. Os beholders estavam irados, seus tentáculos fervilhavam de energia e agora era a hora de dispará-los.

Freya posicionou-se em frente de todos quando os raios formaram uma teia inescapável de energia que se arrastou pelo salão mortalmente. Eu pude ouvir a pele de Freya fritando conforme raios desintegradores criavam cicatrizes permanentes em sua pele. A bárbara urrou de dor e fúria, cravou as garras no chão, perfurando a pedra e fazendo-a estilhaçar. Alguns raios, com efeitos variados, avançaram para adiante da cobertura de Freya, mas eles ricochetearam no chão sem efeito enquanto eu rogava pela proteção de Endimion. 

Sethos clamou pelo deus estrangeiro e uma pulsante onda de energia positiva varreu o salão aliviando o sofrimento da bárbara. Ficamos ali, embaixo do grande urso, por tempo indeterminado, mas que pareceu ser vários minutos. Então, da escuridão ao redor, já livres dos efeitos do lampejo divino, Ian e Emerald apareceram.

O casal Salvatore fez soar das sombras uma sinfonia mórbida que parecia estar sendo entoada pela própria escuridão. Tocaram levemente as mãos um do outro e em movimentos ágeis e circundantes, rodopiaram o salão numa valsa aterrorizante que me embasbacou por alguns segundos. De repente notei que os beholders agiam de forma muito lenta ou meus movimentos eram tão mais rápidos que qualquer percepção comum. Deduzi que o mesmo ocorria com o restante do grupo.

Arafat e Cebolas já agiam e mutilavam a carne dos beholders restantes com suas espadas largas. Freya entrou em fúria e mastigou aqueles inimigos que ainda teimavam em respirar. Ao final da valsa, duas dezenas de beholders jaziam agonizantes no chão da câmara, litros de sangue inundando as fissuras que compunham o círculo mágico de invocação, desativando-o para sempre.

Sebille aplaudiu de pé e os demais também invadiram a primeira câmara da eterna masmorra. Teomund, decisivo, comentou que devíamos continuar imediatamente.

Não questionamos.


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